Ninja, personagem oriental mascarado que luta com destreza e rapidez, foi popularizado por jogos digitais e filmes de artes marciais. Age com tanta habilidade e precisão que se tornou apelido de quem faz algo impressionante, digno de reconhecimento. Nas últimas semanas, essa palavra, acoplada a outra, esteve no centro de intensas discussões sobre jornalismo. Trata-se da Mídia Ninja, expressão pela qual é conhecido o coletivo Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, criado há cerca de dois anos. Seus integrantes utilizam uma estrutura singela, como celulares equipados com câmera e conexão 3G, para exibir o mundo das ruas ao vivo, sem edição, sem cortes, representação em estado bruto. Querem ser alternativa à mídia tradicional e propor uma narrativa distinta às que diariamente incidem sobre a maneira como se percebe o mundo.
O trabalho do grupo ganhou projeção no primeiro semestre deste ano, quando ruas do Brasil acolheram diversas manifestações populares movidas pela contrariedade a governos e a sistemas representativos. O fenômeno impressionou a sociedade e, em particular, os veículos de comunicação, que tentavam noticiar e entender os episódios. A natureza dos fatos, o crescimento acelerado dos protestos, a volatilidade com que as motivações eram substituídas por outras e a pouca habilidade da imprensa para lidar com acontecimentos dessa ordem ajudam a entender por que os veículos jornalísticos enfrentaram reveses na cobertura.
Ativismo e reportagem
Parte da visibilidade conquistada pela Mídia Ninja se deve à estratégia de mostrar o que é preterido pela mídia convencional. As transmissões chegaram a obter 150 mil acessos nas manifestações de junho, quando milhares de brasileiros ocuparam o espaço público mobilizados, no princípio, pela rejeição a novos aumentos da tarifa de transporte público e pelo descontentamento frente à postura refratária das diversas instâncias dos governos. A massa transformou ruas e praças em cenários de protestos que surpreenderam a imprensa, os governantes e a população em geral, atônita frente à escalada de violência promovida por depredações e pela reação das forças policiais na contenção do movimento.
Em julho, quando o papa Francisco participava no Rio de Janeiro da Jornada Mundial da Juventude, houve forte confronto entre manifestantes e policiais militares, e as cenas de pancadaria, a correria, a tensão, enfim, a urgência e a gravidade dos fatos foram exibidas na hora pelos ninjas, enquanto as tradicionais emissoras de televisão mantinham a programação normal.
Híbrido de ativistas e repórteres, os integrantes, que se consideram pós-jornalistas, buscam mecanismos de financiamento. Bruno Torturra, fundador e coordenador da Mídia Ninja, pretende recorrer ao crowdfunding ou à realização de assinaturas, assim como promover festas, para obter dinheiro e comprar equipamentos, o que permitiria a produção de material editado. Os holofotes geraram muita adesão de pessoas que querem se integrar ao coletivo, mas ainda não foi informado modo de recrutamento e remuneração.
O efeito do ao vivo propiciado pelo trabalho dos ninjas não deveria alimentar a renitente mitologia da imparcialidade, ainda evocada por muito jornalista, muita escola de jornalismo e parte do público. O coletivo realiza uma cobertura assumidamente engajada, pois o ato de ligar uma câmera e transmitir o que se passa caracteriza, também, um ponto de vista, afinal, atrás do equipamento, alguém assume o controle do fluxo e seleciona o que e como mostrar. E não há problema nisso.
Em debate promovido pelo Observatório da Imprensa e capitaneado pelo jornalista Alberto Dines, transmitido ao vivo pela TV Brasil em 30 de julho, Torturra ressaltou que os ninjas não manipulam os fatos durante as transmissões, mas deixam claro o seu ponto de vista. "É muito diferente de você alterar informação ou de você ter uma agenda oculta, que caracterizaria uma manipulação. A nossa agenda é muito clara, inclusive, na hora que a gente dá a nossa opinião e se posiciona. O rótulo de manipulação eu não aceito tão facilmente assim", contestou.
Se as empresas jornalísticas proclamassem sua visão de mundo, suas crenças, o que defendem, o que determina suas escolhas editoriais e o que de fato motiva os silenciamentos, se tudo isso ocorresse, elas prestariam uma grande contribuição para o amadurecimento do jornalismo e da sociedade. Antes de promulgarem uma intangível imparcialidade ou se aterem a conceitos cada vez mais questionados, como o de objetividade, os jornalistas deveriam buscar transparência. No que se faz, no que se diz, no que se mostra, no que se escreve, no que antecede a decisão de transformar um acontecimento em notícia. E hoje há mais cobrança em relação ao jornalismo por conta de pelo menos dois fatores: expansão da educação - mesmo que persistam graves problemas - e a existência de debate e engajamento nas redes sociais - ainda que amenidades dominem.
Atento a essas questões, a Mídia Ninja, entre erros e acertos, recebendo apoios e críticas, vale-se da palavra transparência quase como um mantra. Acusações e defesas explodiram nas redes sociais após o programa Roda Viva exibido semana passada (5/8) pela TV Cultura, que expôs a ligação do grupo com outro coletivo, o Fora do Eixo (FdE), rede que articula cerca de 200 grupos de voluntários em todo o país que produzem cultura. Parecia disputa de torcidas.
Os entrevistados foram Torturra e o líder do FdE, Pablo Capilé. Na noite da sabatina, as manifestações nas redes se caracterizaram pela brevidade. Ao longo do dia seguinte e dos próximos, no entanto, foram publicados no Facebook longos textos, atípicos nesse ambiente, afirmando que artistas e apoiadores não são remunerados e questionando a prestação de contas, principalmente no que se refere a verbas públicas obtidas via editais. A expressão "escravidão (pós)moderna" chegou a ser usada pela cineasta Beatriz Seigner, em texto amplamente compartilhado no Facebook. Tanto foi dito, mas talvez pouco se tenha reconstituído o contexto em que surgiu e se fortaleceu a controvertida rede de Capilé. Havia uma grande insatisfação entre jovens ligados à comunicação e à cultura no que se refere à gestão das políticas públicas do setor, na contramão de conquistas que permitiam o fortalecimento de um circuito "fora do eixo". Neste vácuo, e por conta da articulação do seu líder, o FdE cresceu e chegou aonde chegou.
Nos dias que se seguiram à entrevista, ocorreu um impressionante bombardeio contra o Fora do Eixo e Capilé. Com isso, ficou em segundo plano o debate em torno das implicações da Mídia Ninja para o jornalismo.
Nem tão novo
Muitos, como o veterano Alberto Dines, proclamaram que a Mídia Ninja estabeleceu uma nova forma de fazer jornalismo, mas, por mais tentadora que seja a afirmação, não se sustenta. A rigor, não há novidade em transmitir ao vivo imagens brutas, sem o processamento típico de um telejornal, por exemplo. Também inexiste pioneirismo na busca de abordagens e espaços de veiculação alternativos - vide a imprensa alternativa no período ditatorial pós-64. A história de pessoas e grupos que tentam construir opções à mídia tradicional ou empresarial é longa, e seria, mais do que impreciso, injusto tratar os ninjas como pioneiros.
O que pode ser celebrado como uma distinção, em relação ao padrão da mídia tradicional, é o fato de estarem mimetizados entre os manifestantes, obtendo uma perspectiva praticamente inacessível aos jornalistas das emissoras, que foram rechaçados em alguns atos. Claro que o impedimento do exercício profissional deve ser combatido, por outro lado, sinaliza um importante descontentamento com o padrão de jornalismo praticado.
Não se trata de apequenar o valor do trabalho realizado pelos ninjas, mas, no futuro, eles serão lembrados menos pelo que mostraram, mas sobretudo por terem escancarado para quem ainda não havia percebido que a comunicação de grande alcance, e o jornalismo em particular, há muito deixou de ser prerrogativa de uma empresa ou de estrutura detentora de poder ou capital. No entanto, é preciso fazer um destaque: as imagens obtidas pela Mídia Ninja foram decisivas para flagrar prisões arbitrárias e a infiltração de policiais militares entre os manifestantes no Rio de Janeiro. Trata-se de um material tão contundente que se incorpora em definitivo ao histórico de descalabros da PM fluminense.
A redefinição do papel dos veículos tradicionais decorre da acelerada e disseminada digitalização da comunicação, da expansão da internet e da transferência de muito do que se pensa e faz para o ambiente das redes sociais, gerando novas formas de processamento da vida em sociedade. O que ocorre circunscrito à internet também é vida, expressão de sujeitos contemporâneos, mesmo que o senso comum alcunhe de virtual essa parcela da vida e tente dissociá-la do que é prosaico e cotidiano. E o que se faz em casa ou em qualquer lugar por meio de um smartphone, de um tablet, de um computador ou de qualquer artefato similar pode ecoar no círculo mais íntimo, na comunidade ou no mundo.
Se antes segmentos políticos mais conservadores e comentaristas acusavam na mídia que as redes sociais propiciavam uma espécie de "ativismo de sofá", sem competência ou mobilização para chegar às ruas, com os acontecimentos desta primeira metade de 2013, precisa ser renovada a perspectiva de acompanhamento da voz emanada das pessoas que operam parte de sua existência no ambiente da internet, esta vereda digital sem fim que a alguns ainda assombra e a outros acolhe.
A digitalização também alterou os mecanismos de produção e disseminação de conteúdos em plataformas jornalísticas. Antes, jornalistas formulavam as narrativas, e as possibilidades de interação ou de retorno eram minguadas. A digitalização dos processos tirou da imprensa a prerrogativa da autoria, a ponto de os veículos precisarem se transformar para acolher vídeos, fotos e textos gerados pelo público. Esse fenômeno, chamado de jornalismo pós-industrial, ampliou o compartilhamento de informações. No passado, as empresas de comunicação detinham esse poder de maneira exclusiva, pois, para fazer circular uma notícia, precisava-se de logística complexa para produzir, imprimir e distribuir cadernos de papel ou ainda operar concessões de rádio e de televisão a fim de transmitir áudio e vídeo.
Neste contexto - ampla digitalização da comunicação, prevalência das redes sociais em todos os segmentos da sociedade e transformação de parte do processo jornalístico -, a experiência da Mídia Ninja e a acolhida positiva conquistada pelo grupo podem subsidiar um necessário debate sobre o que o jornalismo tem feito e a capacidade, ou incapacidade, de ele cumprir o papel de fazer a mediação entre os fatos e o público, de compor uma narrativa que dê forma e sentido a uma determinada realidade.
Quais as fragilidades, os limites e os erros do modelo em voga há décadas? Os chamados critérios de noticiabilidade, que no dia a dia das redações respaldam a seleção dos fatos convertidos em notícia, não estariam levando a uma padronização excessiva e a um engessamento editorial? Por que narrativas mal acabadas, sem muita qualidade de imagem, às vezes cansativas, pois a realidade sem edição é lenta e até mesmo enfadonha, mas enfim, por que essas narrativas angariam audiência expressiva? E a questão do impacto dos aparatos tecnológicos sobre a linguagem, sobre o conteúdo? E a incompreensão de que pairam sobre a sociedade anseios, crenças e necessidades de uma organização social, de uma vida que se processe em moldes menos predatórios e vorazes? O jornalismo, por exemplo, consegue mostrar a incapacidade de as cidades acolherem com qualidade a existência? Se pautadas por uma perspectiva editorial e um modelo de negócios tradicionais, as empresas de comunicação não compreenderão as novas possibilidades.
Narrativas complexas
Um aspecto importante de ser ressaltado ao se discutir a qualidade, o impacto e a abrangência do trabalho da Mídia Ninja é o limite natural da atuação, por conta da complexidade própria de determinados processos jornalísticos. Se não faltam ímpeto, coragem e destreza para manter uma transmissão ao vivo em situações nem sempre amenas, como perseguição policial a manifestantes, depredações de mobiliário urbano e agressões, por outro lado, percebe-se despreparo para avaliar e lidar com situações que requerem mais elaboração do trabalho.
Uma evidência disso foi o fraco desempenho do grupo em 19 de julho, quando integrantes do coletivo entrevistaram o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, a convite do próprio. Talvez tenha havido ingenuidade ao aceitarem o chamado, pois, nas redações, sabe-se que político, quando convida para entrevista, quer defender seu interesse. Ao mesmo tempo, tratava-se da primeira vez que uma autoridade reconhecia e dialogava com eles. Irresistível. Antes, foram barrados em uma coletiva com o governador Sérgio Cabral.
No Facebook, o grupo estampou uma autocrítica: "Há muitas e cruciais diferenças entre cobrir a rua, a ação dos protestos e encarar um ensaboado governante, tête-à-tête, por mais de uma hora. Mas há uma semelhança que, para nós, determinou a decisão: sejam tropas de PMs violentos ou prefeitos de metrópoles chamando para o ringue, são desafios colocados diante de nós".
O grupo também registrou: "É no processo, na experiência, na transparência, no teste real, ao vivo e sem cortes, que estamos avançando. Construindo nossa base de público e equipe. E pensando, com os muitos erros e acertos, em como entregar um jornalismo cada vez mais próximo da enorme confiança e expectativa que tanta gente deposita na Mídia Ninja". Há nessa fala um tanto de heroísmo, mas é insuficiente para supri-los da experiência necessária frente a processos jornalísticos mais complexos e que geram, portanto, narrativas mais elaboradas. Ao mesmo tempo em que se reconhecem os limites e os comprometimentos da mídia tradicional, não há como desprezar a experiência e a capacidade que ela tem de deslindar pautas controversas.
Havendo condições técnicas, a cobertura ao vivo revela-se simples. Ela prescinde do tratamento da informação, da edição. Antes da internet, os fatos eram sabidos no dia seguinte, quando os jornais impressos chegavam ao leitor. Em tempos mais remotos, descobria-se o que se passava no mundo com semanas ou meses de atraso, quando as histórias conseguiam viajar quilômetros tantos. E como todo relato, tudo já vinha processado, embalado, digerido, repercutido, inflado, diminuído, suprimido, interpretado, enfim, a história vinha pronta.
A versão ao vivo, uma obsessão contemporânea e generalizada, escancara a crueza sincrônica da vida. Narrativa bruta, pedra arrancada sem arremate. Transmite-se ao vivo porque há pressa de ver ou porque se precisa? Ocorre que, neste ímpeto de descobrir tudo o que se passa, acaba-se atropelado pelo ritmo natural dos acontecimentos, e o público fica sem saber direito o que acontece. Não existe mais dia seguinte. Vive-se um eterno presente, um aqui e agora moto-contínuo. E eliminar a edição das rotinas jornalísticas pode funcionar bem em situações-limites, quando se quer ou se precisa do instantâneo. Se não for essa circunstância, quantos poderão dispor de tempo farto para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos em seu curso natural? Algo a ser pensando pela Mídia Ninja e por todas outras vozes alternativas ou dissonantes que, sem exclusão, devem se somar ao jornalismo tradicional para que o panorama da comunicação, e em particular a imprensa, fique cada vez mais pautado pela pluralidade e pela diversidade de perspectivas.
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