Contam de trovões e relâmpagos. E muita chuva. Como se fosse o fim do mundo. Os rios ultrapassaram as margens e foram levando tudo pela frente. Os animais espalhavam-se, os galos deixavam de cantar, e as pessoas se trancavam em suas casas. Houve quem ficasse sem alimentos ouvindo o ranger da fome e o choro das crianças.
Mais de uma semana, alguns contaram mais de um mês, mas aí é exagero.
Quando as portas foram abertas, perceberam o tamanho do estrago: árvores arrancadas, alambrados pelo chão, e a ponte que ligava a vila ao norte, destruída. Davam os primeiros tapas no aprumo das coisas, e eis a novidade: um homem nu e morto na barranca do rio. Acorreram de imediato e a surpresa foi grande: o morto tinha os olhos abertos e uma alegria distribuída pelo rosto como se tivesse visto coisa pra lá de bonita antes de morrer.
Quando se morre, morre-se de contentamento?, eu me perguntava.
Mal o banham e o vestem, e a notícia se espalha. De tudo que é canto, chegam gentes. Por mais que tentem, não conseguem fechar os seus olhos.
Contam que os milagres de pronto se sucederam: a mulher estéril que emprenhou, o aleijado que correu, o cego que passou a ver.
Antes que o desatino virasse histeria coletiva, contam que o padre, o mais rápido que pode, providenciou o enterro. Contam que as romarias se sucederam dia sim, outro também, até que o tempo, inexorável em suas pertinências, acabou por reduzi-las.
Se vocês seguirem pela BR-116 em direção ao sul, no quilômetro 154 há uma árvore posteira e uma estrada de terra. Seguindo-a por uns 40 minutos hão de chegar a uma pequena cidade. Busquem pelo cemitério em sua rua principal. Ao fundo, encontrarão o túmulo. Sempre caiado de branco, sempre coberto de flores. Se a sorte for justa, encontrarão sobre ele uma majestosa garça branca com algumas penas rosadas. Permanece por ali até o pôr do sol para depois alçar voo em direção ao horizonte.
Que idade eu tenho quando tudo isso acontece? Uns oito anos, creio. A idade do maravilhamento. Das primeiras descobertas do mundo.
Pampianas
Sérgio Napp: O morto dos olhos vivos
"Quando se morre, morre-se de contentamento?"
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