"Podem assim existir origens provisórias, que praticamente e de fato formam os primórdios da tradição particular mantida por uma dada comunidade, por um povo ou por uma comunhão de crença; e a memória, embora suficientemente inteirada de que na realidade não foram sondadas as profundezas, pode, contudo, do ponto de vista nacional, conformar-se com aqueles primórdios e, pessoal e historicamente falando, vir a descansar aí." Desta forma, Thomas Mann introduz a narrativa do seu José e seus Irmãos, dando conta de que o filho de Jacó considerava a já distante cidade de Ur, na Babilônia, como princípio das coisas que lhe diziam respeito.
Pode-se indagar sobre o que tem isso a ver com os assuntos que costumeiramente tratamos aqui neste espaço: temas voltados à cultura regional, que pressupõem uma tradição (inventada?) intrínseca. Contudo, parece tácito que não exista tradição sem que se tenha presente uma origem.
Quando discutimos a cultura tendo como figura central o arquétipo do gaúcho, nem sempre se localiza com alguma precisão o marco inicial que orienta a reflexão. Deitando o foco sobre a música regional, por exemplo, podemos cogitar que seu nascedouro vincula-se à obra de Barbosa Lessa, cancionista, cuja primeira composição data de 1946 (a valsa Quero-Quero). Tratando de outra manifestação considerada elemento tradicional desta comunidade (imaginada): a poesia oral improvisada (trova ou pajada). Ainda que haja terreno para boas discussões, a trova pode ter sua origem nos improvisos de um tal Pedro Canga, pelos idos da Guerra dos Farrapos. Já a "payada" parece que, cá por estas bandas, podemos atribuir ao gênio de Jayme Caetano Braun a partir dos anos 1970. Os festivais nativistas têm sua origem na Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana lá no início da mesma década. E, sendo tudo historicamente tão recente, às vezes tratamos todas essas manifestações como elementos de longínqua tradição na nossa comunidade. A primeira, maravilhosamente "inventada", e a segunda, necessariamente "imaginada", como ensinam Eric Hobsbawm (A Invenção das Tradições) e Benedict Anderson (Comunidades Imaginadas).
Voltando à questão das origens, me pego cantarolando os versos do grande Miguel Bicca desde às barrancas do Rio Uruguai: "Onde estão minhas origens, onde estão minhas raízes, o guri segue indagando, o que lhe responderão... Quem sabe no azul do céu, quem sabe no verde do chão, quem sabe no fundo do rio, quem sabe no teu coração!".
Coluna
Pampianas: Provisórias origens
"Quando discutimos a cultura tendo como figura central o arquétipo do gaúcho, nem sempre se localiza com alguma precisão o marco inicial que orienta a reflexão"
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