Uma vez ouvi de um militante comunista uma ótima descrição da sociologia de uma passeata contra o governo. Eram os anos 1970 ainda, mas creio que o sentido geral ainda tem cabimento. O que dizia ele: que se pode dividir uma dada população em quatro ou cinco estratos, com relação à capacidade de mobilização, por exemplo, para ir para a rua protestar (ele pensava na revolução socialista, acho que com maiúsculas, sonho que eu nunca tive, ainda que jamais tenha deixado de desejar mais justiça social).
Há a vanguarda, restrita numericamente e pronta para a luta a qualquer momento. Em segundo, há a massa avançada, também restrita numericamente, mas não tanto quando a vanguarda; é gente que tem uma consciência completa da situação, entende as variáveis em jogo, tem capacidade de avaliação complexa e é sensível a apelos de mobilização. Em terceiro, há a massa intermediária, que, como a classe média, é ampla, heterogênea e sem consciência clara das coisas, mas é capaz de se mobilizar em momentos de crise aguda e tem certa capacidade de entender o jogo que está sendo jogado, mas com mais dificuldade que a massa avançada. Finalmente, na rabeira, há a massa atrasada, gente que só entende fragmentos da coisa toda, um grupo enorme de pessoas para quem o mundo faz sentido em partes e aos poucos, e que só vai de arrasto na onda do movimento geral.
Dizia o sujeito este, que uma passeata se decidia na massa intermediária; dela é que a vanguarda deveria tirar a febre, quando quisesse saber se podia ou não rolar qualquer iniciativa. Vanguarda e massa avançada sempre a postos, e na outra ponta a massa atrasada inerte, como de hábito - era na intermediária que se deveria prestar atenção.
Alguma sociologia
O que está ocorrendo agora, nas variadas manifestações públicas Brasil afora, pode ser submetido a esse mesmo modelo? Acho que em parte sim: por mais que a conexão via internet esteja fazendo um papel novo na divulgação e na criação de redes de informação, de consciência, de organização, a participação dos indivíduos ainda responde a sua capacidade de entender o que se passa (e de querer arriscar algo na mudança) e a sua posição social, de classe, de renda. E vem das classes médias, das massas intermediárias na divisão acima evocada, a força decisiva para que essas passeatas tenham corpo, volume, significação.
Não sou sociólogo, não quero ultrapassar a altura dos meus tamancos nesse debate, em que muito papel já se gastou. Especialmente na tentativa de definir o que é classe social, muito particularmente a dita classe média. Quando Marx formulou suas teses, o conceito de classe ganhou uma força até então inédita: foi ele que colocou no centro do debate sobre o futuro da sociedade ocidental moderna, vulgo capitalismo, a tese de que o movimento da história se definia pela luta de classes. E não quaisquer classes: para ele, havia as classes fundamentais, a burguesia e o proletariado, e o resto era paisagem, na prática. A classe média, para ele, não teria nunca condições de ser uma classe "para si", isto é, com consciência de seus interesses e aspirações a ponto de formular um projeto autônomo, isso se é que a classe média reuniria as mínimas condições de ser uma classe "em si", com inserção relativamente homogênea nas esferas da produção e da política.
A conversa pode ir longe. Hoje em dia, há incontáveis estudos para definir o que é e como é o espectro das classes, num país como o Brasil. Se pode usar critérios de consumo, de nível de escolaridade, de expectativas e práticas políticas, tudo isso e tanto mais. Agora mesmo, com uma significativa ampliação da capacidade de consumo entre as populações mais pobres no Brasil, apareceu logo um diagnóstico da existência de uma suposta nova classe média, assim como houve quem bronqueasse com tal designação, exigindo que se considere que o que ocorreu foi apenas que a classe trabalhadora ganhou uma folga no orçamento, sem passar para outra classe. (E há clara distinção entre "classe média" e "classe trabalhadora"?)
Alguma literatura
Para a literatura, esse assunto deveria ser vital - no fim das contas, quem é o leitor, senão a gente da classe média? Haverá leitores nas altas esferas, assim como nas camadas baixas; mas o grosso é gente que vive de salário, estudou um tanto, paga suas contas e impostos dentro de um orçamento controlado, faz férias e tem horizonte relativamente aberto para pensar, ainda que não use essa prerrogativa em toda a sua extensão, porque vive muitas vezes submetida a um horizonte mental conservador.
Esse sujeito é que fez, historicamente, o sucesso do romance, esta forma narrativa que em seus começos, no século 18, era vista como quase uma barbaridade pelas elites culturais. Depois, foi este leitor o destinatário do cinema massivo e da telenovela, assim como fora da ópera e viria a ser, depois, da canção popular, todas elas formas a seu tempo também consideradas triviais. Tudo gente vulgar, como o prezado leitor e eu.
Quem somos nós? De minha parte, faz tempo que medito sobre o tema, sempre de modo assistemático, como sei. Naturalmente sei que há enormes diferenças, no interior do universo recoberto pelo vago conceito "classe média", de poder de consumo, de gosto, de perspectiva política. Entre o empregado de escasso estudo e com muitos filhos, que corre o risco de ir pra rua a qualquer hora, de um lado, e o funcionário pós-graduado e sem filhos que vai à Europa, de outro, há um oceano de diferenças.
A escola republicana deveria conferir uma mínima homogeneidade a quem passa por ela, no plano cultural, porque ali todos teriam contato com a tradição cultural daquela língua, daquele país, daquela época, assim como se habilitariam para os estudos superiores. Não é o que acontece no Brasil, com o abismo que separa os filhos das classes confortáveis, que estudam bem pagando bastante, e os filhos das classes desconfortáveis (acabo de suprimir a existência da classe média, quase sem me dar conta!). Talvez essa diferença piore nos próximos tempos, dada a universalização do ENEM como o vestibular único de acesso às grandes universidades - para deixar um pouco menos obscuro, tenho menos coisas contra o fato de ENEM ser o vestibular universal no Brasil do que contra o fato de o ENEM ter a configuração ruim e mesmo perversa em certos aspectos, por exemplo na falta de prestígio à tradição culta que a literatura encarna. Os filhos de gente culta vão continuar a prestigiar a tradição letrada, mas os filhos do resto todo tenderão a abandonar a leitura de livros, em papel ou na tela.
Bisavôs
Se não bastasse esse texto já estar bastante tortuoso, ele vai se complicar mais ainda agora. Me ocorreu evocar aqui, para explicar para mim mesmo que tipo de classe média eu sou, a figura de dois antepassados meus, que não conheci a não ser de memória oral e por rara foto: meu bisavô paterno Maximiliano Fischer e meu bisavô materno Nicolau Loch. O primeiro alfaiate, o segundo funileiro.
Sou de classe média de pai e mãe, e dos dois pares de avós; mas nesses bisavôs identifico um traço que cada vez mais parece me definir. O bisavô Nicolau, estabelecido em Porto Alegre, na rua da Floresta, atual Cristóvão Colombo, na altura do número 1000, fabricava muitos objetos com sua destreza. Meu tio Raul, já falecido, que viveu com eles uns anos, contava que de sua oficina saíam bombas para embarcações variadas. Nas folgas domingueiras, o vô Nicolau subia o morro Ricaldone para caçar borboletas, que espetava em quadros que enviava para a Alemanha.
Já o bisavô Max exercia seu ofício em Lajeado. Em certo momento, seu filho e meu avô Beno, também alfaiate, foi seu sócio. Sei quase nada dele, mas tenho comigo o casco do velho rádio a válvulas em que ouvia rádios alemãs, em ondas curtas (além da enorme tesoura do vô Beno). Os dois ofícios foram largamente superados pela indústria, a de produtos de alumínio e outros metais, a de roupas.
Se andassem por aqui numa hora dessas, além de se espantarem com a facilidade como que nós desperdiçamos coisas - produtos, embalagens, energia -, provavelmente demorariam a acostumar-se com os produtos prontos que eles produziam um por um, com habilidade manual.
Não sei se fantasio demais, mas gosto de localizar neles a minha condição de classe média.