Estou na plateia do Tom Jazz, uma pequena casa de shows em São Paulo, onde Marina Lima realiza a última apresentação de seu mais recente show, Maneira de Ser. Marina, umas das grandes vozes do fim do século, adentrou a nova era incorporando a mítica da cantora que, por tristeza, perdeu a voz. Durante muitos anos, em incontáveis depoimentos à imprensa, a cantora relacionou a fragilidade, que subitamente assolou o seu canto, às causas emocionais. A falta de tônus vocal vinha sempre associada a fatores psicológicos, psicossomáticos, depressivos.
Recentemente, Marina Lima descobriu que, de fato, suas cordas vocais haviam sofrido um trauma causado por um erro médico. Com a garganta obstruída pelo muco de uma forte gripe, foi submetida a uma sucção que acabou comprometendo o seu desempenho vocal. O que até então havia sido relacionado a causas psicossomáticas encontra uma explicação clínica, e a cantora, liberta da condição de sabotadora de si mesma, volta a cantar. No palco do Tom Jazz a voz de Marina está limpa, potente e bela como há muito tempo não se ouvia.
O caso de Marina serve para chamar a atenção sobre o perigo de se atribuir às causas emocionais as doenças do corpo. Pode-se afirmar que Marina foi vítima de um duplo erro médico? Se o primeiro erro é o erro do otorrinolaringologista que machuca a paciente, talvez o segundo erro pertença ao analista que, transferindo à cantora a responsabilidade sobre a "perda" da voz, tenha trabalhado na contramão da saúde. Talvez.
O território da psique humana é vasto demais e, por isso, não deve ser padronizado. Na ânsia por um diagnóstico, muitas vezes acaba-se confundindo sentimentos com sintomas. Não era tristeza que impedia o canto de Marina, mas a má conduta de um profissional, simples assim. Quando a psicologia entra em cena, tudo vira símbolo e o que não passava de um erro médico, transforma-se em uma perigosa autossabotagem. Não podemos cair no comodismo de acreditar que tudo o que nos acontece é motivado por desejos obscuros. Quantas pessoas seguem acreditando serem as culpadas pelas suas próprias doenças? Nem tudo é psicossomático.
Coluna
Ismael Caneppele: Nem tudo é psicossomático
Caso de Marina Lima, que descobriu que suas cordas vocais haviam sofrido um trauma provocado por erro médico, serve para chamar a atenção sobre o perigo de se atribuir às causas emocionais as doenças do corpo
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