"... se recuarmos na história da literatura à cata de textos significativos sobre a vida campestre, haveremos de retroceder a um período muito anterior ao de Virgílio: ao século IX a.C., época de 'Os trabalhos e os dias' de Hesíodo." Essas linhas constam do livro O Campo e a Cidade na História e na Literatura, do inglês Raymond Williams. Sirvo-me delas para introduzir uma questão que, desde sempre, ronda minhas frágeis reflexões sobre o universo da canção regional gaúcha: por que se canta o passado?
Ainda hoje há uma farta produção de canções, quer no cenário dos festivais nativistas, quer no mercado fonográfico, que se ambientam num espaço-tempo de um gaúcho anterior, primitivo, pioneiro que parece se querer presentificar. Essa personagem, ora heroica, ora mítica, deixa as páginas da história ou da memória coletiva e vem matear na sala de estar dos apartamentos da cidade como se ainda estivesse ali ao alcance dos olhos num mundo rural que se chega numa breve viagem de automóvel. Ainda que chegue apenas pela audição. E ainda que a dicotomia rural/automóvel pareça passar sem que se perceba.
Assim desfilam ornadas por requintes instrumentais e melodias dos mais variados matizes estéticos, imagens rústicas, bravuras, destrezas, asperezas, muitas glórias e algumas derrotas. O homem em seu embate na tentativa de dominar a natureza dura e primitiva. E, mesmo que esse cenário tenha desaparecido há quase um século em sua inteireza indômita, ainda assim, segue sendo cantado, às vezes, com fervor reverencial.
Sempre haverá um homem em trânsito no homem, como já cantamos com Luiz Sérgio Metz, o Jacaré. É nesse movimento que as heranças culturais atravessam os tempos.
E essa ação de entregar, transmitir, chamamos tradição.
A questão inicial, contudo, segue sem resposta contundente. É certo que, neste breve espaço, sequer se possa roçar qualquer resposta ou elaboração menos rasa. Assim como parece ser cristalina a capacidade de identificação popular que estas canções que se debruçam no passado gaúcho possuem. Parece se tratar de uma busca eterna: o paraíso perdido? Há um poema de Apparicio Silva Rillo (1931 - 1995) que aponta: "naqueles tempos, sim, naqueles tempos..."; mas o poeta, por certo, sabia que, em todo e qualquer tempo do homem, sempre haverá irredutivelmente a recrudescência do não e a esperança do talvez. Mas por que mesmo se canta o passado?
*Compositor e mestre em literatura