Hoje, na imensidão do oceano de imagens e textos ao qual nos submetemos todos os dias, seja através dos jornais de notícias, da televisão, da internet, com suas redes sociais e múltiplos portais, muitas vezes nos afogamos em tamanha diversidade e mesmo falta de qualidade do que lemos e vemos.
José Saramago, no documentário Janela da Alma, de Walter Carvalho e João Jardim, refletia sobre o absurdo da quantidade de informações que recebemos em nosso cotidiano: "Do que me serve receber 500 jornais todos os dias? Que faço eu com toda essa informação?" Isso em 2001.
Em 2013 a avalanche de informações não cedeu, pelo contrário, a carga aumenta a cada dia. E agora eu pergunto, repetindo o sábio português: O que fazemos nós com toda essa informação?
Em Porto Alegre um farol gira, iluminando, dando uma ideia do que fazer, em pouco tempo e com um resultado de qualidade - apesar da quantidade. Mais do que informação, a questão é de conhecimento e de sua utilidade.
Pois o canal fronteiras.com nos leva nessa direção: ingressamos em um continente de mensagens que, sincronizadas, embora distantes geográfica e temporalmente, nos dão uma noção de como condensar uma gama incrível de pensamentos além das fronteiras.
Como num tecido multicolorido, costurado ao longo de cerca de sete anos, a nova proposta de canal do Fronteiras do Pensamento é a de aproximar o público ao redor do mundo de ideias desenvolvidas por seus conferencistas em vídeos de um a nove minutos, ou mesmo excertos das conferências, como no caso de Edgar Morin, que do alto dos seus 91 anos de idade ainda entra saltitando em um palco, e do qual temos 31 minutos preciosos sobre a dificuldade de se falar em felicidade hoje.
O luxo é poder ouvir e ver, em casa, tanto Zygmunt Bauman falar das amizades descartáveis do Facebook, como Dani le Rouge, o ex-líder estudantil francês, hoje membro do Parlamento Europeu, discorrer sobre a mudança de identidades em um mundo que também muda.
É poder assistir Mario Vargas Llosa, recém feito Nobel de Literatura, falar sobre cultura no café barbearia que poucos lugares do mundo devem ter. É ter a chance de poder se emocionar com toda a afetividade e falsa timidez de Mia Couto em um momento apoteótico de 2012: aquele que fez surpreender quase três mil adolescentes da rede pública de ensino, que conheceu um autor, vivo - ora, pasmem! -, africano, louro, de olhos azuis e que fala português! A África nunca mais foi a mesma na imaginação dos pequenos portoalegrenses. E esse era justamente o objetivo: debater a existência de toda a variedade étnica, lingüística, cultural daquele continente aparentemente tão "um só", a África.
E nesta colcha de retalhos, feitos, eles mesmos, de um mosaico de visões sobre o mundo, podemos acessar grandes reflexões que chegaram a Porto Alegre através da iniciativa já consolidada, que agora embarca na missão otimista de irradiar todo esse arcabouço teórico para o os quatro costados.
Sem exagero nenhum poder-se-ia dizer que o novo canal fronteiras.com se apodera de um vácuo anteriormente existente na virtualidade brasileira e quiçá, mundial: através de uma rica colagem de imagens, de textos, de culturas, pois aí encontraremos o cineasta iraniano Mossein Makmahlbaf; sua conterrânea, a juíza exilada Shirin Ebahdi; o indiano Amartya Sen; a noruegues Äsne Seierstad; e neste ano o anglo ganês Kwame Anthony Appiah e a liberiana Leymah Gbowee, além do timorense José Ramos-Horta.
Fruto de edições anteriores, podem ser conferidos trechos independentes de falas de conferencistas como o teórico inglês da literatura e da cultura, Terry Eagleton, palestrante no ano de 2009, abordando a retomada do ateísmo e sua contrapartida, a fé cega. Em duas falas de um minuto (!), o autor do best seller Teoria da Literatura, de A ideia de cultura, Jesus Cristo - Os evangelhos e Ideologia, retoma momentos cruciais de sua reflexão.
Em um minuto também, o historiador italiano Carlo Ginzburg, igualmente conferencista em 2009, comenta a força da ignorância em nosso mundo. É importante salientar o relevo intelectual de Ginzburg, que ajudou, com seu olhar detetivesco a criar o que se convencionou chamar de "micro-história", uma abordagem metodológica que leva em conta circunstâncias muito específicas em locais determinados, mas que são passíveis de estabelecer uma nova ordem de funcionamento ao que se supunha verdade histórica inconteste.
São olhares ímpares, cheios de curiosidade, que nos impactam de dentro da tela, porque ali, em nosso computador, iPad, iPhone, seja qual for o dispositivo de que se dispõe, e que conversam conosco: uma pequena aula, muito próxima, particular.
Por outro lado, nem sempre a dita "alta cultura" é o que encontramos nessa possibilidade quase infinita que é o canal. Há, por exemplo, o relato de José Padilha, de dois minutos apenas, em que relata a experiência de filmar o longa-metragem Tropa de Elite, cujas imagens cheias de impacto causaram furor na audiência brasileira e mesmo internacional.
Ainda desde o Brasil, "o físico, astrônomo, professor, escritor e colunista" Marcelo Gleiser, em seis minutos, narra histórias e mitos sobre a criação do mundo, desde o ponto de vista da ciência.
De fora do Brasil, mas falando de nossa cultura, o historiador britânico Peter Burke, palestrante da primeira edição, em 2007, reflete sobre a cultura brasileira em relação às diversas religiões que temos no país.
Antoni Muntadas, artista catalão, fala que as produções artísticas deveriam acontecer como tudo na vida: em tempo real, assim como Alain de Botton, o filósofo contemporâneo que fundou a School of Life, fala, em vídeos de um minuto sobre a importância do amor, da arte e da solidão.
Seja refletindo sobre a tirania no Irã, a humanização das cidades pelas pessoas, a diversão e a literatura, os avanços da biotecnologia, a proteção aos oceanos, nossa obsessão pelos erros, a amizade facebook, Sócrates e a felicidade ou apenas repensar o pensamento; o canal caleidoscópico do Fronteiras do Pensamento garante não tantas certezas, mas a possibilidade de existir virtualmente com muita qualidade, ainda que em pouquíssimos minutos, numa costura sem fim neste grande tecido multicolorido que têm sido os ciclos de conferência e agora, de vídeos, ao longo desses sete anos.
Porto Alegre merecia essa possibilidade de ver e rever o mundo de tantas formas, com tanta clareza e concisão. O mundo também.
*Joana Bosak é doutora em literatura comparada e professo do Instituto de Artes da UFRGS