É difícil pensar em outra banda brasileira de rock que promova um álbum trazendo parcerias como NX Zero, Dead Fish, Filipe Catto e Chitãozinho & Xororó. Ainda há Pabllo Vittar, presente na primeira parte do trabalho. Talvez só a Fresno conseguiria juntar nomes tão diversos e, curiosamente, tudo fazer sentido.
Um dos expoentes do que se convencionou a chamar de emo no Brasil, a Fresno lançou, nesta quinta-feira (26), Eu Nunca Fui Embora - Parte 2 nas plataformas digitais. A segunda metade do álbum traz sete faixas e mais participações, além de contar com a sequência de uma das músicas preferidas dos fãs.
A Parte 1 de Eu Nunca Fui Embora foi lançada em abril, com sete faixas. Além da música que dá título ao 10º álbum da banda, a primeira metade teve destaques como Eu Te Amo / Eu Te Odeio (Iô-Iô), com participação de Pabllo Vittar, e Era Pra Sempre, que chegou a repercutir no TikTok com montagens de casais.
O vocalista e guitarrista Lucas Silveira — que compõe a banda com Gustavo Mantovani (guitarra) e Thiago Guerra (bateria) — ressalta que a decisão de dividir um disco em duas partes passa um recado para a pressa que se tem hoje em dia com a divulgação musical. Ele acrescenta que, no universo digital, os artistas ficam sujeitos aos trending topics do dia do lançamento.
Segundo o músico, fatos alheios podem ofuscar a divulgação de um disco. Às vezes um trabalho de dois anos pode ser esquecido muito rápido ou nem chegar nas pessoas, como ele observa. Para o vocalista, dividir o disco em duas partes possibilita lançá-lo duas vezes:
— Fica esse clima de lançamento por mais tempo. É um momento muito bom para a banda, de crescimento e com coisas novas para mostrar. É uma janela por onde entram muitos fãs novos. Quando primeiro lança o lado A e, depois, o B, o público está com o ouvido mais descansado para o restante do disco. Acho que também consegue trazer mais atenção para a segunda parte.
A reportagem de Zero Hora esteve presente na listening party (festa com finalidade de audição de um disco) da Parte 2, que foi realizada em Porto Alegre, no Opinião, na última terça-feira (24). Antes das novidades, o público — que, vale ressaltar, encheu a casa — ouviu a primeira metade de ENFE. Todas as faixas estavam na boca dos fãs.
Referências oitentistas, megazord emo e fechando história
Musicalmente, Eu Nunca Fui Embora dá continuidade ao que a Fresno vem trabalhando desde Sua Alegria Foi Cancelada (2019) e Vou Ter Que Me Virar (2021), que já reposicionaram a amplitude do som da Fresno, com a exploração de diferentes vertentes. Embora a base da banda seja algo entre o emocore e o pop punk, agora também traz elementos eletrônicos e referências oitentistas de synth-pop.
Um pouco desse frescor pode ser conferido em A Gente Conhece o Fundo do Poço, primeira faixa da Parte 2, que remete ao A-ha em sua introdução. Lucas recorda que a música foi a última a entrar no disco. Ele apresentou uma demo para Guerra como um caminho a ser apontado no próximo álbum. Por sua vez, o baterista sugeriu para gravarem logo. Quando ficou pronta, eles perceberam que a faixa era para ser a primeira do disco, aumentando a velocidade média da Parte 2.
A pegada oitentista segue com Se Eu For Eu Vou Com Você, que apresenta um cruzamento do emocore dos anos 2000 com uma pegada Simple Minds e Roxette. Só que a grande surpresa da faixa está no feat com o NX Zero, na figura do vocalista Di Ferrero. Na listening party de terça, Lucas descreveu a música como um "megazord do emo".
Apesar da parceria entre as duas bandas já ter ocorrido nos palcos, era inédita em estúdio. Algo bastante aguardado por muitos fãs de décadas passadas, embora houvesse uma rivalidade entre os dois fandoms na internet.
— Durante a turnê do I Wanna Be Tour (festival itinerante que trouxe atrações internacionais do emo, como The Used e Simple Plan), ficou muito claro que a gente construiu um negócio incrível no Brasil, a ponto de chamar atenção dos gringos, com a galera cantando todas — diz Lucas. — A faixa é para honrar a amizade das duas bandas.
Depois de Fala Que Ama, que agrega um pop dançante e suave, Essa Vida Ainda Vai Nos Matar traz outra parceria do ENFE — desta vez, com a banda de hardcore Dead Fish, na presença do vocalista Rodrigo Lima. Lucas sublinha que a relação com o Dead Fish tem mais de 20 anos, desde saudosos festivais de hardcore:
— É uma música que fala sobre a vida como artista da estrada. Então, nada mais justo do que cantá-la com alguém que tem uma estrada mais longa do que a nossa e que também nunca parou. Ter o Rodrigo com a gente nesse momento é algo que casou muito.
A faixa também dá créditos aos integrantes do grupo de pop puk americano The Wonder Years na composição. De acordo com Lucas, após ter elaborado a música, ele percebeu similaridades com a canção Palm Reader e decidiu adicioná-los na autoria.
Lembro de falar: está aí a dor que a gente precisa. Foi uma junção
LUCAS SILVEIRA
sobre a faixa "Diga, Parte Final"
Na sequência há Diga, Parte Final, com participação da cantora gaúcha Filipe Catto. A epopeia amorosa começou com a primeira parte sendo lançada pelo Visconde, projeto paralelo de Lucas, e ganhou continuação no álbum Infinito (2012) da Fresno. Aliás, Diga, Parte 2 é uma das preferidas dos fãs, até hoje sendo fortemente bradada nas apresentações do grupo.
Lucas relata que há anos tentava pensar em fechar a história. Até que surgiu a ideia de trazer o ponto de vista da mulher. Ele queria trazer a voz de outra pessoa, mas estava com dificuldade de descobrir quem poderia entender e incorporar essa personagem. Um dia a banda estava em um programa de TV com a presença de Catto, e o compositor viu ela cantando uma música de Gal Costa.
— Lembro de falar: está aí a dor que a gente precisa. Foi uma junção, casou muito o jeito que ela entregou a música — descreve. — Tudo tem outros lados. Às vezes, principalmente o artista que está escrevendo, romantiza aquilo que viveu e nem era exatamente assim.
A Parte 2 fecha com Canção Para Quando O Mundo Acabar, que é uma balada melancólica no melhor estilo Fresno, e Camadas — essa com parceria de Chitãozinho & Xororó.
Seguindo em frente
Formada em 1999, em Porto Alegre, a Fresno vive há alguns anos uma fase redentora. Para os integrantes, a virada de chave com Sua Alegria Foi Cancelada, que serviu de base para o VTQMV — ali sim com a banda aumentando de tamanho, sendo presença em grandes festivais e enchendo casas pelo país. Só o fato da realização de listening parties em mais de 30 cidades do Brasil e pelo mundo, nas duas partes do disco, é um indicativo de uma forte base de fãs.
— A gente sente que cresceu bastante. E também em maturidade, de entender tudo muito de fora, trazer as escolhas filtradas para dentro. Sentimos isso não só com a resposta do público, mas também como a gente se coloca dentro da nossa empresa e banda — reflete Guerra.
O grupo se apresenta na capital gaúcha, no Auditório Araújo Vianna, nos dias 15 e 17 de novembro. Originalmente, os shows estavam previstos para junho, mas foram adiados por conta da enchente — o que postergou também o lançamento da Parte 2.
Aliás, as faixas dos últimos álbuns compõem boa parte do repertório dos shows da Fresno. E o público canta junto. Embora os clássicos também estejam presentes, não é uma banda que está em turnê para celebrar "X" anos de carreira ou tocar sucessos de tempos mais pomposos. É uma situação pouco comum dentro do rock brasileiro: a Fresno não foi embora, seguiu em frente.