Com mais de 30 anos de carreira, Duca Leindecker nunca havia realizado um concerto como o deste domingo (5), no POA Drive-In Show. No lugar de fãs vibrando na grade, carros se enfileiravam a uma distância segura no estacionamento da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Além de ser a única apresentação em três meses, o momento foi especial por contar com uma participação inédita: aos 16 anos, Guilherme, filho de Duca, entrou no bis para tocar com o pai pela primeira vez em um palco.
Nesta entrevista, o compositor conta como é a sensação de estrear em um drive-in, avalia a importância da música na quarentena e lamenta o modo como algumas autoridades estão lidando com a pandemia.
Como foi a experiência de tocar em um drive-in, olhar para a plateia e enxergar só carros?
Foi muito acima da minha expectativa. Achava que poderia ser complicado de ter interação com o público, mas foi muito legal nesse sentido. Deu para sentir exatamente as músicas que mais bombavam, que o pessoal queria mais escutar. Ficou muito parecido com um show dentro do que estávamos acostumados a fazer.
De que modo percebia a reação do público?
O pessoal fica dando sinal de luz e buzinando. Às vezes começava uma música lenta, e o público começava a dar sinal de luz e buzinar (risos). Foi uma estrutura fantástica de qualidade de som e de imagem. E também foi impecável o controle sanitário. É uma coisa muito legal, tem todo o conforto de um carro, embora vá um pouco contra a tendência de preservação do meio-ambiente para o futuro. Mas, para o momento, é uma excelente alternativa.
O show foi realizado em um momento em que a Capital estava sob bandeira vermelha, com alta taxa de ocupação de leitos de CTIs. Qual é o significado de um show em um momento como esse?
De forma responsável, a gente tem que tentar manter a cabeça legal. A música é uma grande terapia, é o que te faz mudar de frequência mais rápido. Se alguém está baixo astral e escuta uma música com algo bacana, na hora muda de frequência. Um show como esse é um baita tratamento para a cabeça de todo mundo, porque não está fácil segurar a onda dessa mudança radical de cotidiano, que ninguém poderia imaginar.
A música traz otimismo?
Sim. A gente não pode perder o otimismo. Tenho a experiência de lidar com muitas energias difíceis, que é o caso da morte. Perdi meu pai com oito anos; perdi o Marcinho (Ramos, guitarrista), na Bandaliera; perdi o Cau (Hafner, baterista) e o Luciano (Leindecker, baixista, irmão de Duca), na Cidadão Quem. Foi uma sucessão de perdas muito fortes que me tiraram da minha trajetória. E eu sempre transformei isso em música. E nunca uma música depressiva. Pode ser uma música contemplativa, reflexiva ou ter uma abordagem mais triste, mas no fundo é sempre otimista. É preciso transformar essa energia ruim em energia boa.
Com a pandemia, muitas pessoas têm valorizado mais a música e outras formas de arte. Você concorda?
A pandemia tinha que servir para as pessoas enxergarem tudo que não estavam enxergando. Agora ficou muito claro. Levamos mil anos para sair da Idade Média, passamos pelo Iluminismo, Modernismo, Pós-Modernismo para agora uma parcela barulhenta da população começar com esse papo obscurantista contra vacina, contra ciência, contra arte… É inacreditável. Agora ficou claro que isso é um absurdo. Com essa pandemia, ninguém mais pode negar a importância da arte e da ciência. O que mais as pessoas querem é que os cientistas descubram uma vacina. Agora tudo ficou mais explícito. Como a máquina parou, muita gente passou a refletir, afinal, o que é importante para nossa vida?
Como estava sua agenda antes da pandemia? Shows como esse do drive-in podem representar uma retomada?
Estava com uma agenda muito boa. Tive que cancelar 15 shows na primeira quinzena de março. Era um ano com uma turnê bem intensa, com o lançamento do Próximo Céu, que acabou tendo um lançamento bem caseiro. Terminei o disco e fiz o clipe em casa. Não haverá mais shows, ou haverá apresentações esporádicas, como essa do drive-in. A gente pula esse ano. Graças a Deus, consegui uma carreira estável, com retorno de direito autoral, então até consigo me dar o luxo de parar, mas a maioria dos artistas enfrenta no momento uma situação muito difícil. Eu já havia imaginado mil possibilidades na vida, como passar por uma guerra, por exemplo, mas em uma guerra há algum lugar para onde ir, para buscar. Uma pandemia não é assim. Não há para onde ir, todos os países estão passando pela mesma coisa, uns de forma melhor, outros piores. E o Brasil é um dos piores nesse sentido, por toda esse conflito entre governo federal, estadual e municipal.
É uma ausência de liderança?
Não. É pior do que isso. É uma liderança irresponsável, que mostra o caminho nitidamente errados para todo mundo. E as pessoas estão pagando por ele, começam a fazer coisas impensadas, estimuladas por um presidente irresponsável, que enxerga tudo pela superfície sem se ater a complexidade das coisas. Acho que sempre foi inacreditavel a negação da ciência. O culto a burrice. O descaso com o conhecimento. Eu entendo que a ciência às vezes é arrogante, mas não há como negar que a Terra é redonda.
Você considera que as redes sociais têm contribuído para disseminar o obscurantismo?
É que nosso presidente é assim, explicitamente. E representa muita gente. É inaceitável uma pessoa como a Lya Luft embarcar nessa. É inacreditável. Bolsonaro sempre foi coerente em sua estupidez. Ele não mentiu para ninguém, sempre falou o que acredita, sempre foi fascista, racista e xenófobo. Nunca escondeu isso. Não venha me dizer que votou nele por achar que ele era diferente, porque ele está agindo exatamente como sempre foi. Ela se surpreendeu porque ele está agindo como Jair Bolsonaro. Mas, afinal, ela votou em quem?
Opiniões como essa deve, atrair muitas críticas nas redes. Como você se relaciona com isso?
Sou muito de frequências. Não vou desperdiçar minha vida com uma frequência ruim. No entanto, há momentos em que é preciso se pronunciar, senão estamos sendo complacentes com coisas que são crimes. As pessoas cometem realmente crimes na internet, de difamação, de fake news. Já recebi provocações e respondi, mas não fico dando muita trela, porque o que eles querem mesmo é ficar realimentando essas coisas. Mas, por incrível que pareça, essas pessoas não entram muito nas minhas redes. Paradoxalmente, as redes também passaram a ser um fórum permanente sobre coisas que ante não tínhamos acesso. Estou assistindo YouTube, fascinado com a quantidade de conteúdos maravilhosos.
O que você tem consumido pela internet nesse momento de isolamento?
Estava fazendo aula de Meteorologia, História, Engenharia do Som… É uma quantidade enorme de coisas que se aprende no YouTube, se buscarmos fontes confiáveis. Há pouco tempo, estava em uma aula com um professor que é PhD em Meteorologia, disciplina que estudo muito porque tem a ver com duas atividades que pratico, vela e paraquedismo. É um ambiente que não poderia ser mais renascentista. É o contrário do obscurantismo. A enciclopédia está completamente aberta, com pessoas dando aulas incríveis, respondendo a perguntas. Escolha um assunto, procure por fontes confiáveis e você poderá aprender qualquer coisa.
O show do domingo também foi marcante por ter a participação do seu filho, Guilherme, que tocou com você uma música no bis.
Isso também tem a ver com o que falei sobre a possibilidade de aprender pela internet. Nunca induzi o Guilherme a fazer nada. Um dia, falei do nada: “Gui, tu não tá afim de tocar baixo?”. Ele respondeu que sim. Falei que o baixo do tio Alemão (Luciano, irmão de Duca, morto em 2014) estava lá no estúdio, era só pegar e tocar. Um dia, passei pelo quarto dele e escutei uma levada de baixo animal. Pensei que ele estava vendo o vídeo de alguém tocando. Quando bati na porta, me dei conta de que era ela tocando. Havia aprendido aquela linha por meio de uma vídeo-aula do YouTube.
O envolvimento do Guilherme com o baixo, tocando um instrumento que era do Luciano, também tem relação com dar novo significado às perdas por meio da música.
Sim. Ele está amarradão no baixo. Aonde vai, leva junto o instrumento. Eles não se desgrudam mais.