A ação de predadores sexuais que usam batinas já foi tema de um filme vencedor do Oscar, Spotlight (2015). A obra retrata a luta de um grupo de jornalistas americanos para convencer vítimas de pedofilia a revelarem abusos cometidos por padres, numa Boston profundamente conservadora e católica.
Pois agora coube novamente a uma jornalista, gaúcha, traçar um abrangente panorama de abusos sexuais no Haiti e na República Dominicana, dois países que ficam numa mesma ilha do Caribe. No livro A Cruz Haitiana, recém concluído, Iara Lemos apresenta relatos chocantes sobre essa ilha, tão complexa e tão próxima do Brasil.
São 226 páginas de leitura fácil sobre um tema difícil. O Haiti descrito por Iara é um paraíso tropical maculado por integrantes da Igreja Católica, prestigiadíssima por ser fundamental como provedora de auxílio no país mais pobre da América.
Iara, jornalista radicada em Brasília e atuante na Folha de S.Paulo, nasceu em Alegrete, em 1979, mas seu chão sempre foi Santa Maria. Formada em Jornalismo pela UFSM, especialista em História Política do Brasil, venceu um Prêmio Esso graças a sua primeira reportagem sobre o Haiti, em 2007, quando ainda era repórter do Grupo RBS. Foi nessas incursões que tomou contato com freiras brasileiras, padres haitianos e europeus e, sobretudo, com advogados que lhe abriram as portas para um mergulho na pedofilia. Não por acaso o subtítulo da obra é “Como a Igreja Católica usou de seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti”.
A jornalista leu milhares de documentos sobre o assunto, vários deles reproduzidos no livro. Pesquisou arquivos judiciais em francês (a língua oficial haitiana) e inglês, se comunicou com haitianos por meio de um dicionário de creóle (língua que mescla dialetos indígenas, africanos e francês) e viajou mais vezes ao país.
Foram 10 anos de pesquisas, nos quais a autora contou com ajuda de Mitchell Garabedian, advogado que virou celebridade como responsável pelas ações que fortaleceram a investigação do caso Spotlight, no início dos anos 2000, que descortinou as violações consumadas por padres na região de Boston, e na exposição da guarida que os criminosos receberam do Vaticano. Outro colaborador da obra é o jornalista haitiano Cyrus Sibert, que viabilizou o contato de Iara com meninos e meninas vítimas de escravidão (sim, ela ainda existe no Haiti) e a exploração sexual. De tanto fazer denúncias, ele teve de abandonar seu país natal.
O leitor vai deparar com a história detalhada (fotos, documentos) de padres que passaram a maior parte de sua trajetória sendo removidos em decorrência de abusos sexuais, até conseguir abrigo seguro em território haitiano. Alguns fugiram do Haiti para a vizinha República Dominicana e lá continuaram a atuar como caçadores de crianças.
O livro não é apenas sobre abusos, é um mergulho nas agruras haitianas. Há espaço para histórias de heroísmo, como a de freiras gaúchas que navegaram com haitianos rumo aos EUA, foram detidas e ajudaram eles na volta ao país de origem. Tudo relatado em rodas de chimarrão, com erva-mate levada por Iara, já que lá o produto não existe.
A autora mostra como a dieta cotidiana no Haiti inclui pão feito de lama (com um pouco de farinha para dar volume) e porquê um rato adulto chega a custar US$ 1. Uma verdadeira fortuna, num país onde 71% da população local sobrevive com menos de US$ 2 ao dia. Ele é consumido geralmente assado e, dependendo do tamanho, serve de refeição para uma família inteira.
Em resumo, um livro do qual é impossível escapar sem uma profunda lamentação pelos destinos desiguais da humanidade.
O livro
- A Cruz Haitiana: Como a Igreja Católica Usou seu Poder para Esconder Religiosos Pedófilos no Haiti. De Iara Lemos. Tagore Editora, 226 páginas, R$ 43.
- Pré-venda no site escritoresbrasileiros.com.br
- Live de lançamento no dia 18, às 19h. Iara será entrevistada pelo jornalista Marcos Linhares. Assista pelo Instagram, no perfil @iararblemos.