É inegável o reconhecimento que o nome Franz Kafka (1883-1924) carrega em praticamente todas as partes do globo. Por outro lado, o nome Max Brod (1884-1968) não gera tal familiaridade. Contudo, é graças a Brod que o público pôde conhecer a obra do autor que influenciou gerações. A bela relação de amizade entre os dois escritores é retratada no premiado espetáculo Um Beijo em Franz Kafka (que arrematou prêmios como o Shell de Teatro, Bibi Ferreira, entre outros), que terá apresentações no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, neste sábado (29) e domingo (30) (ingressos a partir de R$ 50, à venda no site). A peça mostra a potência de uma amizade que impactou o mundo.
Kafka publicou poucas narrativas em vida, como O Veredito, em 1913, e A Metamorfose, sua mais famosa obra, em 1915. Antes de morrer de tuberculose, o autor tcheco confiou seus escritos a Brod e incumbiu o amigo de uma terrível missão: queimar toda a sua obra, incluindo cartas, bilhetes, anotações, rascunhos e livros inéditos.
A trama da peça se passa dias antes de Kafka (interpretado por Maurício Machado, que recebeu em 2019 o troféu de melhor ator por sua performance no Prêmio Nacional Cenym) ser internado em um sanatório na Áustria, onde viria a falecer. O encontro com Brod (Anderson Di Rizzi, indicado como melhor ator coadjuvante no mesmo prêmio) gera uma série de reflexões acerca da vida, da vocação literária — chamada por Kafka de "seu chamado" — e da forte relação entre os dois. A peça recorre à ficção para revelar a emoção do embate entre os dois grandes amigos.
— Esse legado que temos hoje em dia do Kafka, de toda a sua vasta obra, é por conta dessa amizade — pontua Machado.
A história é permeada por referências e citações aos textos de Kafka, incluindo ficção e cartas. O bailarino Thiago Pach personifica, em segundo plano, alguns dos personagens e pensamentos de Kafka. A trilha original é executada ao vivo por Ricardo Pesce, que se divide entre o piano e o acordeom.
Para dar vida a Kafka, Machado teve de mergulhar no universo do autor, não só literário, mas de todos os aspectos de sua vida, rica de acontecimentos e particularidades. O ator destaca ainda a responsabilidade do papel — o seu primeiro biográfico em quase 36 anos de carreira. Ele ressalta que Kafka costuma ser visto como uma figura sombria, mas tinha um humor ácido e um espírito esportista, apesar da tuberculose, incurável à época.
— É muito triste. Ao mesmo tempo, o espetáculo é uma ode à lealdade e à amizade, porque esse companheirismo trouxe frutos para o mundo inteiro, para o universo humano, comportamental, psicológico, literário, para o mundo das artes — afirma.
Profundo amor e respeito
Brod e Kafka se conheceram quando cursavam Direito, no início da vida adulta. O primeiro, que já era um escritor com livros publicados, logo reconheceu o valor das produções do amigo. Conforme o diretor Eduardo Figueiredo, o público se identifica na relação afetiva dos dois ilustrada no espetáculo.
— Mesmo quem não conhece a obra de Kafka se apaixona pela relação desses dois grandes amigos — destaca Figueiredo.
Kafka se tornou um expoente da literatura mundial depois de morto. Machado lembra que Brod poderia ter sido desleal e se apropriado da obra do autor como se fosse sua. Contudo, o amigo, que não atingiu o sucesso, decidiu levar o legado de Kafka adiante.
— Tem uma demonstração absoluta de profundo amor e respeito pelo amigo, de encorajamento sobre a vocação e o talento alheio, isso é de uma generosidade ímpar — ressalta o ator. — O amigo, com tão baixa autoestima, sempre se colocava para baixo, se achando incapaz, dos piores autores do planeta. E o Brod conseguia reconhecer na obra do amigo um gênio absoluto.
Brod, na verdade, salvou a obra do amigo em duas ocasiões: primeiro, ao poupá-la da destruição; e depois, quando escapa do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e leva-a junto, em um momento no qual havia perseguição à produção literária. Ele consegue fugir para Israel, onde organiza toda a obra e se empenha em publicá-la.
O autor, que admirava a obra do amigo, ficou responsável pelo espólio de Kafka — visto que sua família não o incentivava nem tinha interesse em seu trabalho como artista. Essa, portanto, é outra questão discutida na peça: Kafka perante a sociedade, a família, bem como sua relação com os amigos e com a literatura, sua grande paixão.
— É das histórias de amizade mais lindas que já conheci em toda a minha vida — salienta Machado.
Texto especial
O texto tem a assinatura de Sérgio Roveri e foi especialmente desenvolvido a pedido de Figueiredo. O dramaturgo fez uma adaptação a partir dos diários do escritor. O diretor conta que sempre gostou das obras de Kafka e queria produzir um trabalho teatral sobre o autor. No entanto, a ideia de retratar Max, uma figura pouco conhecida, e o encontro entre os autores, partiu de Roveri.
O propósito do espetáculo, explica Machado, é apresentar ao público essa relação e incitar o interesse pela vasta obra de Kafka. Para Figueiredo, o mais interessante é que as criações trazem questões vinculadas à humanidade.
— Todos os personagens sempre são como fantoches da sociedade, eles estão perdidos socialmente. Então, a gente se encontra no espetáculo nessa busca interior que todo mundo tem, de quem eu sou na sociedade, qual a minha função, o que eu estou fazendo aqui socialmente — aponta o diretor.
Por se tratar de um espetáculo sobre Kafka, a peça pode ser erroneamente considerada soturna e de difícil compreensão por quem ainda não assistiu a ela, mas o diretor assegura que o espetáculo, com uma hora e 10 minutos de duração, é aprazível. Assim, apesar de contar com momentos densos e de embate, há outros de leveza e humor.
O espetáculo estreou em 2018 e, recentemente, chegou a integrar um projeto gratuito de apresentações em escolas públicas da periferia de São Paulo — em todas as bibliotecas, sempre havia um livro de Kafka, salienta o elenco.
Além da questão afetiva, o espetáculo aborda questões como autoestima e autossabotagem. Quando era vivo, Kafka não conseguia emplacar suas obras, sendo necessário manter um emprego paralelo, pois não conseguia se sustentar como artista.
— Acho que por isso é tão forte e provoca tantas emoções nas pessoas e tem um impacto visual tão lindo e potente. É muito próximo de todos nós por tudo isso que aborda. Todo mundo se reconhece nessa questão da baixa autoestima, de às vezes não se sentir tão justificável dentro da sua profissão, de se colocar para baixo — avalia Machado.
Mesmo assim, Kafka inspirou muitos escritores, como Jean-Paul Sartre, José Saramago, Gabriel García Márquez e Clarice Lispector, para citar alguns. Antes deles, porém, um dos primeiros a serem influenciados por sua capacidade de criar narrativas geniais foi Brod. E é graças a ele que os outros puderam ser impactados.