O desejo de voltar e a angústia de quem ficou à espera dão o tom de Ítaca — Nossa Odisseia I, da diretora e dramaturga carioca Christiane Jatahy, que chega à Capital nesta quarta-feira (7), integrando a programação do 29º Porto Alegre em Cena. O espetáculo, uma simbiose entre o teatro e o cinema, estreou em 2018 nos palcos de Paris, na França, onde a diretora vive atualmente. Ao público gaúcho será apresentada uma versão audiovisual, em duas sessões na Cinemateca Capitólio, às 17h (após, haverá um bate-papo virtual com Jatahy) e às 20h.
Ítaca — Nossa Odisseia I é uma releitura do épico grego Odisseia, de Homero. Aborda, em cenas que remetem aos tempos atuais, a travessia feita por Ulisses após a Guerra de Troia e sua ânsia por deixar a ilha da ninfa Calipso para finalmente voltar a Ítaca; e a espera vivida por Penélope, que durante 20 anos acreditou no retorno de Ulisses, resistindo a pretendentes que queriam tê-la como esposa tanto quanto tirá-la do poder.
Christiane Jatahy já havia praticado o exercício de adaptar um texto clássico anteriormente. Fez isso em trabalhos como Júlia, que apresentou em Porto Alegre em 2012, com texto inspirado em Senhorita Julia, do sueco August Strindberg. É um modo de usar o passado para pensar o presente e projetar o futuro, ela diz.
— Durante bastante tempo da minha trajetória artística, trabalhei a partir de materiais que vinham da realidade presente. A partir de determinado momento, passei a me interessar pelo caminho inverso, a pensar como eu poderia levar essa realidade do momento presente para textos já existentes — explica a diretora. — É uma forma de pensar em como o passado ainda está no nosso presente, fazer uma reflexão sobre o que passou para que possamos projetar um outro futuro. A gente não tem como mudar as coisas sem olhar para o que já aconteceu.
Neste espetáculo, a reflexão se dá de diferentes formas, começando por tirar o espectador da zona de conforto. No teatro, o palco é dividido em duas partes por uma fina cortina prateada. De um lado está representada Ítaca e os dramas de Penélope. Do outro, a ilha e a batalha de Ulisses para conseguir se desvencilhar do feitiço da ninfa. Metade do público assiste de um lado e a outra metade, de outro. Em ambos os lados, as atrizes brasileiras Julia Bernat, Stella Rabelo e Isabel Teixeira (a Maria Bruaca de Pantanal) interpretam todas tanto Penélope quanto Calipso, enquanto os atores franceses Karim Bel Cacen, Cédric Eeckhout e Matthieu Samper também dão vida tanto a Ulisses quanto aos pretendentes de Penélope.
A proposta é que os espectadores troquem de lugar ao longo do espetáculo, até que, em dado momento do roteiro, quando Ulisses finalmente chega a Ítaca, a cortina é erguida e os dois cenários viram um só — o ponto alto da peça, quando o palco é literalmente inundado e os personagens passam a "nadar" nas próprias emoções. Quem assiste à versão audiovisual vê, em momentos de plano aberto, as movimentações da plateia entre os dois cenários, de modo que o público passa a também fazer parte da cena. Não se trata, contudo, de uma filmagem do espetáculo.
A versão em vídeo funciona como uma outra obra, pois constrói uma narrativa própria. É, em alguma instância, um registro do que aconteceu no palco do parisiense Teatro Odéon, mas pensado inteiramente para o cinema. Há alternância entre os planos de filmagem e até momentos em que a câmera é operada pelos atores, proporcionando uma experiência diferente ao público desta outra versão.
— Foi uma peça filmada em diferentes planos, editada, pensada para continuar circulando. Eu acho isso superinteressante, porque o teatro é tão efêmero que eu sempre fico pensando em como podemos fazer com que ele ganhe uma permanência. Sempre que filmo um trabalho, desejo que as pessoas que não puderam assistir ao momento do palco tenham uma fruição e um impacto artístico com a obra filmada, que não seja só um registro. No caso de Ítaca, é uma outra obra — explica a diretora.
Além de fazer o público transitar entre os cenários e lidar com o fato de os atores interpretarem múltiplos e convergentes personagens, Ítaca — Nossa Odisseia I desafia o espectador ao trazer insistentes toques de atualidade a uma história épica. Destaca-se um paralelismo com o contexto político brasileiro iniciado com o impeachment de Dilma Rousseff — analogia à resistência de Penélope aos interesseiros pretendentes — e a sequencial ascensão do bolsonarismo — representado no espetáculo pela violência que toma conta de Ítaca após o retorno de Ulisses.
— Era uma mulher sendo deposta, empurrada por homens para fora do poder, algo que tem uma relação profunda com a história de Penélope. Todo esse processo, esse lugar que a gente tombou, essa catástrofe social e política no Brasil, começa com esse golpe na democracia. Toda vez que você golpeia a democracia, a resposta é a violência — reflete.
Chama atenção o movimento da diretora de debruçar-se sobre o cenário brasileiro com seu fazer artístico, uma vez que ela não tem residência fixa no país desde 2014 e há alguns anos não apresenta um trabalho aos conterrâneos. Ítaca, por exemplo, não só cumpriu temporada na França como é majoritariamente dialogado em francês (em Porto Alegre, a versão audiovisual será apresentada com legendas), com exceção de algumas frases encabeçadas pelo trio de atrizes brasileiras.
Jatahy explica que, apesar da distância física, jamais conseguiu desligar-se do que acontece no Brasil. É o seu principal combustível artístico, afinal. Tanto que atualmente está em cartaz em Paris com um espetáculo que aborda aspectos do governo de Jair Bolsonaro — há outros dois textos recentes sobre o tema, que juntos formam o que a autora chama de Trilogia do Horror. Ela espera trazer os novos trabalhos ao país em breve e projeta voltar em uma próxima edição do Porto Alegre em Cena com O Agora que Demora — Nossa Odisseia II, espetáculo que dá continuidade a Ítaca.
— Estou bem feliz por voltar a apresentar no Brasil e pelo fato de o primeiro lugar ser o Porto Alegre em Cena. É muito importante que esse festival esteja acontecendo depois de todo o tempo em que ficamos no vazio, lidando com toda essa violência contra a cultura. Além disso, acho importante falarmos no sul do Brasil sobre as questões que falamos em Ítaca — diz a diretora.
Ítaca — Nossa Odisseia I
- Nesta quarta-feira (7), às 17h e às 20h, na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1.085), em Porto Alegre. Duração: 120 minutos. Após a sessão das 17h, haverá um bate-papo virtual com a diretora Christiane Jatahy.
- Ingressos a R$ 30, disponíveis na plataforma guicheweb (sessão das 17h ou sessão das 20h).