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Transformar games em produções de Hollywood gera, na maioria das vezes, frustração para os fãs dos jogos. E para os amantes do cinema. A decepção mais recente foi com Mortal Kombat (2021), que tentou corrigir os defeitos dos dois longas anteriores, mas errou diferente. Sonic: O Filme (2020) e Detetive Pikachu (2019) são os poucos pontos positivos dessa rotina de tentativa e erro. Eis que surge Free Guy: Assumindo o Controle para mostrar que é possível passar desse chefão que se chama "adaptação".
Mesmo sem ser uma versão cinematográfica oficial de um jogo em específico — Free Guy mergulha no mundo dos games no estilo battle royale, que fazem muito sucesso com o público jovem —, o filme comandado por Shawn Levy e estrelado por Ryan Reynolds consegue abordar uma mídia dentro da outra com eficácia, criatividade e uma nítida liberdade, algo que outras adaptações não têm.
Na história, Guy (Reynolds) é um NPC (personagem não-jogável, ou seja, um figurante) do fictício Free City — que parodia games como Free Fire e Fortnite, além de trazer elementos de franquias mais antigas, como GTA e SimCity — e a sua rotina não tinha surpresas: diariamente, como um atendente de banco, era vítima de diversos assaltos e presenciava com passividade o caos na cidade onde vivia. Tudo muda quando o personagem "ganha vida" ao se apaixonar pelo avatar de Molotov Girl (Jodie Comer), uma jogadora do mundo real.
A grande questão é: Guy não sabe que é um NPC, nem que vive em um mundo digital e, muito menos, que o seu jogo será descontinuado para dar lugar para uma continuação que ninguém quer — em uma crítica à enxurrada de sequências e derivados que a indústria do entretenimento entrega constantemente. Ele, ao lado de Molotov Girl, precisa, então, salvar aquela realidade virtual onde existe vida das mãos ambiciosas do bilionário dos games Antwan (Taika Waititi).
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Criativo
Mesmo quem não está por dentro da moda dos jogos mais "modernos" vai conseguir acompanhar e, provavelmente, se divertir com as quase duas horas de Free Guy. O longa apresenta a sua trama de maneira orgânica e não complica o que não for necessário — games e inteligência artificial, afinal, são temas abordados no cinema há décadas. Então, sem grandes surpresas nessa questão. O diferencial do longa é a sua criatividade para tratar destes assuntos, casando comédia, dinamismo e um texto convincente.
A equipe responsável por contar essa história, aliás, foi escolhida a dedo. Enquanto o diretor Shawn Levy tem em seu currículo produções como Uma Noite no Museu (2006) e vários episódios da série Stranger Things (a partir de 2016), os roteiristas Matt Lieberman e Zak Penn escreveram, respectivamente, Crônicas de Natal (2018) e Jogador Nº 1 (2018). A cereja do bolo é Reynolds, conhecido por dar vida ao desbocado Deadpool e por ser a personificação do sarcasmo. Ou seja, existe um interessante equilíbrio entre inocência, criatividade e acidez que torna Free Guy um blockbuster diferenciado no meio de diversas continuações, remakes e reboots.
E, apesar de estar chegando aos cinemas em agosto de 2021, o longa estava programado para ser lançado em julho do ano passado. A pandemia, porém, fez com que ele fosse adiado por várias vezes. Neste meio tempo, a Disney, que comprou a 20th Century Fox, estúdio original de Free Guy, teve tempo de se inserir na produção, acrescentando divertidos easter eggs e participações especiais que vão deixar os fãs das grandes franquias da casa do Mickey vibrando no cinema.
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Coração
É claro que quase toda grande produção moderna tem como objetivo virar franquia. E, com Free Guy, não é diferente. Depois de ter uma estreia interessante nas bilheterias norte-americanas, Ryan Reynolds declarou que a Disney já discute uma sequência para a produção — mesmo que ela própria critique a prática e a ganância das grandes corporações que deturpam obras originais e criativas. Porém, mesmo que o filme deixe possibilidades para que a sua história continue, esta não era a sua preocupação. A história é fechadinha, priorizando entregar um aventura genuína para o espectador, com princípio, meio e fim.
Tendo como pano de fundo a emancipação de um personagem que tinha que viver conforme um roteiro, preso em uma rotina sem qualquer perspectiva e que "desperta" após se apaixonar — sim, guardadas as devidas proporções, lembra O Show de Truman (1998) —, Free Guy tinha grandes chances de derrapar em clichês baratos. A produção, no entanto, consegue dosar bem os seus ingredientes e, até mesmo nas horas de mensagens edificantes e discursos heroicos, se sai bem — uma das melhores sacadas da produção está na abordagem das armas, as quais Guy praticamente não pega nas mãos. A sua tática para "upar" dentro do game é desarmar os seus adversários. E quase nada disso soa piegas na projeção.
Já as sequências de ação de Free Guy são grandiosas, e o cuidado com os detalhes é de encher os olhos. O elenco, por sua vez, é recheado de talentos que se dão muito bem em cena, mostrando uma grande química com Reynolds — o grande destaque, porém, vai para Lil Rel Howery como Buddy, o melhor amigo do protagonista que, assim como em Corra! (2017), rouba as cenas nas quais aparece, arrancando gargalhadas e até emocionando.
Apesar de ter alguns problemas, como um segundo ato mais longo do que deveria e a tradução impossível de "skin" — termo utilizado para descrever upgrades dos personagens — para o português, que gera momentos um tanto quanto vergonhosos nas legendas, o longa estrelado por Reynolds consegue superar esses obstáculos para entregar uma "virada" prazerosa e uma esperança de que boas ideias podem virar bons filmes, desde que haja liberdade para criar. Free Guy é uma aventura para recarregar as energias.