Por Armindo Trevisan*
Professor, poeta, teólogo e crítico de arte
A Editora da PUCRS, na sua Série História, está lançando na próxima quarta-feira (26/10) o livro A Imagem Nômade, cujo subtítulo, A Tapeçaria das Índias e o Brasil do Século XVII, é sugestivo. Trata-se de um tema ausente de nossa bibliografia de cultura artística. Seja dito, desde já, como um convite aos leitores, que o livro de Cláudia Damiani apresenta três qualidades básicas: é original, possui numerosas ilustrações a cores e é instigante, no sentido de que traz muitas informações inéditas sobre um tema atualíssimo: até que ponto o olhar de uma cultura pode identificar-se com o olhar de outras culturas; e até que ponto podem existir migrações ópticas, antropológicas e estéticas entre culturas diferenciadas.
O livro é uma versão da tese de doutorado da autora, reelaborada para o grande público. No fundo, ela deseja descrever a migração de olhares diferentes, surpreendidos por situações de vida e natureza diversos. Em síntese: o que aconteceu com os europeus quando se viram confrontados com os descobrimentos, principalmente com o Descobrimento do Brasil. Conhecemos a Carta de Pero Vaz de Caminha, reveladora do pasmo que os portugueses experimentaram ao defrontarem-se com os índios. Acontece que, a esse primeiro pasmo, sucederam outros, à medida que outras nações europeias intervieram na conquista de Portugal. Sabemos que uma das principais interferências foi a dos holandeses, quando o Príncipe Maurício de Nassau (1604-1679) se estabeleceu no Recife, à frente de suas tropas, acompanhado de uma comitiva de cientistas e artistas. Dentre esses, dois pintores impuseram-se à atenção mundial: Albert Eckhout (1610-1665) e Frans Post (1612-1680). No Brasil, Post é o mais conhecido dos dois. No livro de Claudia Damiani descobrimos, porém, que as pinturas de Eckhout foram mais decisivas para a migração das imagens. O curioso é que, devido à alta voltagem cultural dos holandeses, eles passaram em breve a privilegiar outros pontos de vista, ou seja, outros exotismos, como o de apresentarem os índios vivendo numa espécie de paraíso terreal. Sob esse aspecto os franceses intensificaram semelhante visão.
A autora descreve como as imagens, levadas à Europa pelo Príncipe Nassau e por ele oferecidas a outras monarquias reinantes, com intenção de autoglorificação e demonstração de superioridade civilizatória, foram replicadas em livros e outros suportes, entre os quais um importante suporte da época: as tapeçarias produzidas na Manufatura dos Gobelins, em Paris. É este o objeto central da pesquisa. A Tapeçaria das Índias concretizou-se nas séries Anciennes Indes (1687, com interpretações das pinturas de Eckhout), e Nouvelles Indes (1735, com pinturas de um artista francês, Alexandre-François Desportes, o qual fez uma “releitura” de versões originais de outros artistas).
Inicialmente, o que atraiu a atenção dos europeus, transmitidas pelo próprio Maurício de Nassau, foram as imagens mais rudemente opostas à elevada cultura da então Holanda, que já tivera artistas excepcionais. Por isso os europeus, da França e de outros países, a quem Nassau ofereceu suas telas, privilegiaram o aspecto exótico de tais registros.
A palavra “ex-ótico” denuncia, na sua etimologia, a estranheza de um olho que vê algo nunca visto, ou seja, fora de seus hábitos. Não admira que a primeira ilustração do livro seja uma xilogravura aquarelada de Johann Froschauer para a edição de Mundus Novus, de Américo Vespúcio, em que se documenta a primeira imagem do canibalismo no Novo Mundo.
Vale a pena deter-se no itinerário da metamorfose de tais imagens nômades e em sua evolução dentro de uma moldura genérica barroca e rococó. A leitura do livro traz subsídios interessantes para situar a recepção imagética sobre o Brasil dentro de sua história posterior, como é analisada atualmente por experts como Peter Mason e Benjamin Schmidt. Determinados aspectos de tais autores são comentados com argúcia pela autora.
À guisa de conclusão, digamos: a investigação de Cláudia Damiani é muito fundamentada, não raro excitante, a despeito de sua carga de detalhes (que, felizmente são absorvidos pelas imagens coloridas, algumas dotadas de setas indicadoras, que chamam a atenção para pormenores nem sempre são fáceis de serem detectados. Os leitores terão de fazer certo esforço para assimilarem tantos “bits” de informação, mas vale a pena. Como diz Carl Sagan, em seu famoso livro Cosmos, que deu origem à série de episódios televisivos do mesmo nome: “As grandes bibliotecas do mundo contêm milhões de volumes, o equivalente a cerca de 1014 bits de informação em palavras e talvez 1015 em gravuras. Isto é 10 mil vezes mais informação do que nos nossos genes e talvez 10 vezes mais do que nos nossos cérebros”. Sagan arremata: “A arte consiste em saber que livros ler”.
Não se trata de um livro de entretenimento, mas de um livro que, de certo modo, lança novas luzes sobre a história do Brasil e sobre a história da arte ocidental. Fornece aos leitores pistas para novas leituras, sobretudo relativas à incompreensão cultural de aspectos que exigem a ultrapassagem do olhar tradicional. Talvez sua leitura nos ajude a chegar a um olhar pessoal mais amplo e mais perceptivo aos olhares de outras culturas. Mesmo com a globalização, não atingimos o feliz momento em que um olhar cultural, em vez de se opor a outro olhar, o enche de mais luz, e de mais solidariedade.
* Este texto é um trecho adaptado da Apresentação de “A Imagem Nômade”
O lançamento
O livro terá sessão de autógrafos, com a presença da autora, às 17h30min de quarta-feira no Quiero Café (Praça Dr. Maurício Cardoso, 141), em Porto Alegre.