Pela primeira vez em seis meses, Nadzri Harif, DJ da rádio Kristal FM de Brunei, pôs os pés em um aeroporto. Segundo ele, a experiência foi fantástica. Tudo bem que se movimentar pelo local estava diferente por conta das máscaras, das barreiras de vidro e dos protocolos de distanciamento social, mas nada conseguiu superar a expectativa de entrar em um avião de novo.
Seu destino? Lugar nenhum.
Como Harif, milhares de pessoas em Brunei, em Taiwan, no Japão e na Austrália começaram a comprar passagens para “viagens” que começam e terminam no mesmo lugar. Algumas empresas os chamam de “voos panorâmicos”, mas outras, mais diretas, se referem a eles como “voos a lugar nenhum”.
— Não tinha me tocado de quanto senti falta de viajar, de voar mesmo, até o momento em que ouvi a voz do capitão nos alto-falantes para nos dar as boas-vindas e fazer o anúncio de segurança — revela Harif sobre a experiência de uma hora e 25 minutos no avião da Royal Brunei Airlines.
A empresa, que chama o programa de “jantar e voar”, serve pratos da culinária local enquanto sobrevoa o país.
Em um momento em que a grande maioria está presa em casa e o setor das viagens internacionais se vê arrasado por conta da pandemia, os voos que decolam de determinado aeroporto e voltam a ele horas depois permitem às companhias aéreas manter os empregados. A prática também mata a vontade de viajar, nem que seja só para voltar a entrar em um avião.
Embora muita gente veja o avião como um meio para chegar a um fim, existindo apenas para levar o público de um lado para outro, alguns dizem que é uma parte empolgante da experiência de viagem. Para eles, os voos a lugar nenhum são um pequeno alívio num ano em que praticamente todas as viagens foram canceladas e as pessoas morrem de medo de as companhias não aplicarem as regras de distanciamento social e uso de máscara.
A Royal Brunei já fez cinco desses voos desde meados de agosto, e, como o sultanato teve poucos casos de covid-19, a empresa não está exigindo que os passageiros usem máscara, apenas os empregados. No mesmo mês, a taiwanesa EVA Air lotou os 309 assentos de seu A330 Dream com tema Hello Kitty para o Dia dos Pais, e a japonesa All Nippon Airways realizou um voo de 90 minutos inspirado em um resort havaiano, com 300 pessoas a bordo.
Sete horas de sobrevoo pela Austrália
Recentemente, a Qantas anunciou um voo nos mesmos moldes sobre a Austrália, e as passagens se esgotaram em 10 minutos.
— Muitos dos clientes mais frequentes estão acostumados a pegar avião semana sim, semana não, e sentem falta da experiência tanto quanto de chegar ao destino — disse Alan Joyce, diretor executivo da Qantas Airways.
Um voo de sete horas, agora em outubro, decolará e aterrissará em Sydney. Os bilhetes variam de US$ 575 a US$ 2,7 mil, englobando o Território do Norte, Queensland e Nova Gales do Sul. A empresa também ressuscitou um popular voo turístico rumo à Antártida. Não chega a aterrissar, mas oferece aos passageiros uma visão diferente do continente gelado.
Diversos agentes na Índia, nos EUA e na própria Austrália relatam que seus clientes vêm se informando sobre os voos para lugar nenhum há pelo menos três meses. Um exemplo é o de Loveleen Arun, de Bangalore, que cria itinerários de luxo para os indianos mais abastados:
— Uma das minhas clientes disse que só queria se sentar à janela e ver as nuvens passando porque sentia falta da vista e das nuvens brancas fofinhas. Tem gente que só quer sair arrastando as malas pelo aeroporto e fazer o check-in.
Críticas de ambientalistas
Antes da pandemia, Christopher Malby-Tynan, gerente de marketing em Londres, viajava de avião com frequência, tanto por motivos pessoais como profissionais. Agora, ele faz a viagem pela viagem em si, como um luxo:
— Fazer um voo para lugar nenhum só é interessante se for um programa exclusivo, se não incluir todo o perrengue de uma viagem. Não é nada atraente se for aquela coisa corrida, aquela experiência em que você se sente meio parte de um rebanho levado de cá para lá. Agora, se você se sentir como em um spa ou dando entrada em um hotel de luxo, então faz sentido.
Em Brunei, Nadiah Hamid, 22 anos, complementa:
— Quando meus pais me forçaram a acompanhá-los no voo da Royal Brunei, achei a ideia de voar sobre meu próprio país ridícula, mas não precisei de cinco minutos para mudar de ideia, porque tive a oportunidade de ver tudo de um ângulo bem diferente.
Segundo Katie Chao, porta-voz da taiwanesa Starlux, a aérea vem trabalhando para tornar a experiência do voo sem destino ainda mais luxuosa, com pacotes para a viagem e a estada em hotel.
As críticas a esse tipo de voo são intensas. Grupos ambientalistas desabafam nas redes sociais, alegando que o setor já afetava o planeta de forma negativa muito antes da pandemia, e prefere continuar insistindo no erro com voos totalmente desnecessários. Em 2018, a aviação civil mundial produziu 918 milhões de toneladas de CO2 – ou o equivalente às emissões anuais da Alemanha e da Holanda.