Todos os anos, o verão gaúcho é palco da atuação de guarda-vidas, seja no Litoral ou em balneários do Interior. A maioria, cerca de 700, são bombeiros militares. No entanto, em torno de 300 são convocados anualmente para compor o elenco. São os guarda-vidas civis: pessoas “comuns”, com suas rotinas, seus empregos em outras áreas, mas com aptidão para a função, e que atuam durante a temporada.
Enquanto os guarda-vidas do Corpo de Bombeiros Militar (CBM-RS) são servidores concursados, os civis passam por uma seleção para contratos temporários durante a Operação Verão no Rio Grande do Sul. Durante o período, permanecem nas respectivas cidades das guaritas que ocuparão e recebem cerca de R$ 4 mil mensais.
O grupo também conta com vale transporte, refeição e, em alguns casos, alojamento. O trabalho dura 6h diárias, com troca de turno entre as equipes para totalizar as 12h de vigilância nas praias.
Protegendo vidas em dois continentes
Há casos de pessoas que se apaixonam tanto pela profissão que deixam de tratá-la como uma missão temporária para virar a principal atividade de suas vidas. Na guarita 128 da praia do Presidente, em Imbé, a história de Cleber Barbosa de Castilhos, o “Clebinho”, 45 anos, é exemplo disso.
Um dia fui surfar e ajudei um rapaz, que estava se afogando, a sair da água. Aquilo me ativou.
CLEBER BARBOSA DE CASTILHOS
Atuando como guarda-vidas civil desde a temporada 2008/09, ele se encantou pela água do mar. Oriundo de Caxias do Sul, na Serra, Clebinho estudou Educação Física e trabalhou em escolas de futebol e natação.
— Eu não era muito da praia, o que aprendi mesmo era na piscina. Até que um dia fui surfar e ajudei um rapaz, que estava se afogando, a sair da água. Aquilo me ativou, porque nunca tinha me passado pela cabeça (a ideia de ser guarda-vidas). Então, recebi convite para o curso e resolvi fazer — relembra.
Na época, Clebinho queria apenas ter uma experiência e depois seguir trabalhando na sua área. Contudo, ao final do curso, mudou de ideia e resolveu atuar no Litoral. A partir dali, não parou mais.
Ao contrário disso, ampliou a sua rotina e incluiu o trabalho como guarda-vidas também em Lisboa, Portugal, em 2013. Na época, quem tinha o curso no Brasil também poderia atuar por lá. Atualmente, já há necessidade de fazer uma prova.
Enquanto no RS os servidores são pagos pelo governo do Estado, a remuneração e manutenção dos guarda-vidas no país europeu costuma ser feita pela iniciativa privada. São os próprios quiosques e restaurantes à beira-mar que ficam responsáveis pelo pagamento dos trabalhadores.
— Não tem guarda-vidas militar lá. São todos civis e contratados pelos estabelecimentos. É obrigatório. Se não pagar, nem pode abrir — ressalta.
Entre 11 anos atuando no território gaúcho e cinco no Exterior, Clebinho destaca pequenas diferenças da preparação dos profissionais.
— No RS, há mais treinamentos em água no mar, enquanto Portugal foca mais na piscina. Porém, lá também há uma preparação teórica muito forte.
Um filho em cada país
Durante as temporadas, Clebinho mora de aluguel no Brasil e em Portugal. É uma rotina nômade que, assim como a maré, o leva de um lado a outro. O fruto desse estilo de vida está na família: o caxiense tem um filho brasileiro, Carlos Eduardo, de 11 anos, e um português, Lucca, de 5 anos.
Ele ressalta que faz questão de levar os filhos para acompanhar o seu trabalho nas guaritas, como estratégia para dar uma lição de vida e, ao mesmo tempo, marcar memórias afetivas os dois.
Orgulhoso da sua função, Clebinho diz ter certeza de que, assim, cumpre uma função importante para a sociedade:
— Não é qualquer um que é guarda-vidas. Tem gente que nada muito bem, mas quando chega no mar, fala: "isso não é pra mim". É uma profissão que não é para qualquer um.
Duas décadas de experiência
Andando um pouco mais ao sul pela faixa de areia, próximo à Barra de Imbé, está a guarita 136, ocupada por Rodrigo Pereira Leite, de 50 anos. Há 20, ele atua como guarda-vidas no litoral gaúcho.
na praia de Quintão, em 2002, ajudei a salvar dois rapazes que estavam se afogando. Eu não trabalhava na área. Eu não tinha preparo, mas tinha coragem.
RODRIGO PEREIRA LEITE
Criado no bairro Glória, zona sul de Porto Alegre, ele começou na profissão em Tramandaí e está há mais de 10 anos em Imbé, município vizinho.
Rodrigo, também conhecido como “Espeto”, trabalha na Capital como motoboy. Contudo, conseguiu um acordo com sua empresa para deixar as ruas e avenidas e ocupar as areias do Litoral durante o verão. Ele conta que tinha parentes bombeiros no Paraná e começou a nadar com eles. Mas foi por obra do acaso que encontrou o dom.
— Fiz quatro salvamentos antes de me formar. Em um deles, na praia de Quintão, em 2002, ajudei a salvar dois rapazes que estavam se afogando. Eu não trabalhava na área. Eu não tinha preparo, mas tinha coragem — afirma.
Logo depois, Rodrigo resolveu se preparar e entrou para a turma de guarda-vidas em 2005.
— Foi a melhor coisa da minha vida. Foi uma loteria. Me preparo o ano inteiro para estar aqui cheio de disposição e um sorriso no rosto. É viciante, apaixonante — diz.
Após 20 anos nessa rotina, Rodrigo constituiu família e consolidou sua rotina. Filho, esposa, mãe: todos o acompanham no verão e moram com ele no Litoral nesse período. Também deu tempo para formar amizades como a com o 1⁰ Tenente Joel Cardoso, atual comandante do pelotão de guarda-vidas de Imbé Sul, a primeira dupla de Rodrigo na guarita 143, em Tramandaí.
Cardoso reforça que os guarda-vidas civis têm total preparação, conhecimento e amparo para atuar da mesma maneira que os militares.
— A única restrição é em relação às viaturas e motos aquáticas, que exigem cursos específicos e só podem ser pilotadas pelos militares. Fora isso, são pessoas devidamente treinadas e que estão aptas para atuar da mesma forma — salienta o comandante.
No entorno da guarita, também brota o companheirismo a partir do convívio diário com banhistas que frequentam o local. Arlei Dias, 55 anos, já trabalhou como guarda-vidas militar. Agora, já aposentado, fica tranquilo ao saber que ele e sua família estão protegidos pelo cuidado de Rodrigo.
— Como tem trabalho de prevenção, o olhar deles é no geral. Então a gente fica tranquilo. Isso é muito bom para nós — avalia.
Outra coisa que o tempo longínquo nas praias trouxe a Rodrigo é a lista de salvamentos marcantes ao longo dos anos. O mais inesquecível é de 2005, mas segue vivo na mente dele até hoje.
— Foi meu primeiro ano como guarda-vidas. Lembro até o dia: 1º de janeiro de 2005. Estava próximo da plataforma de Tramandaí, na guarita 151, sozinho. Praia lotada. Todo mundo me alertou e mostrou as vítimas sendo puxadas. Eram duas adolescentes de 15 anos. Parece que parou tudo. Foquei só nelas.
No fim das contas, o porto-alegrense conseguiu salvar a dupla de adolescentes com ajuda de outros colegas e de populares, que auxiliaram a puxar uma corda de resgate que costumava ser usada na época.
E mesmo com tanta história do passado para contar, Rodrigo não cansa e permanece atento ao mar. Mais do que isso, se prepara diariamente e organiza sua vida todo ano para repetir a dose:
— É pelo amor. Entregar uma pessoa para a família com vida não tem preço. O dinheiro todo mundo precisa, mas o mais importante é o amor pela profissão. Conhecer a história dessas pessoas, trabalhar na natureza, não tem coisa melhor.
Associação
Os guarda-vidas civis gaúchos tem uma organização da classe, a União de Guarda-Vidas Civil do Estado do Rio Grande do Sul (UNIGV). A proposta da entidade é atuar na representação e busca por melhorias junto ao governo estadual, como melhores condições de trabalho, estrutura, reconhecimento e apoio para a categoria.