Com tarrafas empunhadas e água na altura dos joelhos, meia dúzia de pescadores enfileirava-se lado a lado. Passava das 9h de terça-feira (21) e Geraldona já havia feito contato com os parceiros de trabalho. Com muita agilidade, a fêmea de boto-de-Lahille se lançava para fora e, em seguida, as redes eram atiradas. Os movimentos sincronizados representam uma marca da chamada pesca cooperativa, que ocorre entre os municípios de Tramandaí e Imbé, no Litoral Norte.
Foi com o objetivo de salvaguardar essa rara conexão entre os animais e os pescadores que o projeto Botos da Barra foi criado, em 2012. Prestes a completar 13 anos, a iniciativa vinculada ao Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acumula avanços e investimentos, e se prepara para os desafios futuros.
Coordenador do projeto e professor da UFRGS, Ignacio Moreno explica que a ideia da iniciativa surgiu diante de relatos de pescadores da região, que temiam o fim da pesca com botos, devido à circulação de lanchas e jet-skis na barra, à desvalorização da profissão e à falta de conhecimento sobre o comportamento dos animais.
O projeto foi estruturado com quatro pilares, que orientam todas as ações realizadas:
- Fortalecimento da pesca artesanal: estabelecimento de vínculos com os pescadores artesanais de tarrafa e incentivo ao consumo da tainha oriunda dessa forma de trabalho, como produto sustentável
- Educação ambiental: divulgação da pesca cooperativa para a comunidade local, turistas e usuários em geral da barra através de materiais de divulgação, palestras em escolas e participação em eventos
- Monitoramento dos botos: observação do comportamento e identificação dos botos presentes na barra através da técnica de fotoidentificação
- Gestão e políticas públicas: promoção do diálogo entre os usuários da barra e os gestores públicos, com o objetivo de integrar os interesses sociais e ambientais com as políticas públicas
Moreno destaca a importância de valorizar o conhecimento do pescador artesanal, que é muito apurado e, por vezes, contribui com informações que a ciência ainda não conseguiu obter. De acordo com o coordenador do projeto, os profissionais conhecem, melhor do que ninguém, o comportamento de cada um dos botos da barra. Também reconhecem pela personalidade quem é quem:
— O pescador conhece o boto, conhece as águas, conhece a tainha, conhece a dinâmica do estuário. Eles sabem como cada boto cerca o cardume e sabe a hora certa de jogar a tarrafa.
Atualmente, 13 botos da espécie ameaçada de extinção entram com frequência no canal – todos foram batizados pelos pescadores. A maioria deles é descendente de Geraldona: a fêmea tem cinco filhotes e quatro netos que também ajudam os pescadores da barra. Para identificá-los, os pesquisadores do projeto catalogaram, com a ajuda de fotografias, características de suas nadadoras dorsais. A matriarca, por exemplo, tem a parte de cima da dorsal cortada.
Monitoramento
O monitoramento da população de botos é feito mensalmente pelos pesquisadores, com o objetivo de estabelecer relações de parentesco e padrões de comportamento. Moreno esclarece que, além de fotografar os animais, são observados detalhes sobre a interação entre pescadores e botos para entender como se dá a pesca cooperativa.
Em 2021, o projeto ganhou um incentivo de R$ 218 mil da Fundação Boticário, que apoia iniciativas ambientais em todo o Brasil. Já no final do ano passado, foi anunciada a retomada do investimento da Transpetro, por meio de um convênio firmado com a UFRGS, que trará à iniciativa R$ 950 mil nos próximos três anos.
— Com o financiamento da Transpetro, conseguimos comprar equipamentos, orientar alunos, ter bolsistas e começamos a praticar mais esses trabalhos específicos. Então, a gente vem até aqui, faz três amostragens, uma justamente sobre a interação, anotamos quantos pescadores tem, quantas tarrafadas são dadas, quantas tainhas pescam, quanto mede cada uma. Perguntamos qual a malha e várias características dos apetrechos, anotamos qual boto entrou, como se mostrou — detalha o biólogo.
Avanços
Com a criação do Botos da Barra, o professor passou a orientar alunos que desenvolveram projetos de pesquisa relacionados à espécie. Em um deles, foi analisado justamente o impacto de ações antrópicas no comportamento dos animais.
— Sempre que tinha kitesurf, não tinha boto. Sempre que tinha jet-ski, não tinha boto ou, se tinha, eles saíam. Ou seja, sempre reações negativas à presença de lanchas, jet-skis e kitesurf. Mas com as lanchas da Transpetro os botos não aparentavam nenhuma reação, porque estão mais acostumados. Coisas que os pescadores já percebiam – relata Moreno.
O estudo e as queixas dos pescadores colaboraram para que, em 2016, fosse criada uma lei para proibir a passagem desses tipos de veículos na barra. No ano seguinte, uma análise mostrou um aumento de 400% na frequência de botos no local durante o verão:
— A ciência já sabe e o conhecimento tradicional também que, quando tem boto, o pescador pega muito mais peixes, fazendo menos esforço, do que quando não tem boto.
Entre os pescadores, a opinião é de que o projeto vem ajudando muito a pesca cooperativa. Francelino Antônio dos Santos Neto, 64 anos, mais conhecido como França, atua na região há quase cinco décadas e garante que a iniciativa avançou muito e que há um grande coleguismo entre os integrantes.
— Nós ganhamos muito com o projeto, faz uns 12 anos que eu permaneço nele e tenho 48 anos de pesca, já me aposentei inclusive. Pesco desde os 15 anos aqui, então tenho um conhecimento muito grande, reconheço todos os botos. E, para mim, é uma vitória conseguir manter isso daqui mais organizado — ressalta França, que é morador de Tramandaí.
Desafios
Entre os principais desafios, Moreno cita a urbanização das cidades do Litoral Norte e a queda no número de pescadores artesanais, devido à desvalorização e à falta de políticas públicas que beneficiem esses profissionais.
— As pessoas querem tomar banho, claro, mas ninguém percebe que isso aqui é algo único. A gente poderia pensar em como manejar essa área, como tornar essa área um local para contemplar a pesca cooperativa — argumenta o biólogo, enfatizando o potencial turístico da atividade, que poderia ser destacado com placas informativas, por exemplo.
O projeto conta com uma equipe multidisciplinar, com profissionais como oceanógrafos, biólogos, geógrafos, antropólogos, pescadores, comunicadores e turismólogos.