
A morte de uma menina de oito anos após participar de um desafio no TikTok, no Distrito Federal, reacendeu um alerta que especialistas vêm fazendo, pelo menos, desde 2017: o uso das redes sociais tem ocorrido cada vez mais cedo – em uma fase da vida em que mecanismos como o controle de impulsos ainda não estão totalmente desenvolvidos, e as crianças são mais suscetíveis a pressões sociais e à negligência dos riscos.
Com isso, brincadeiras que, a princípio, podem parecer inofensivas acabam se tornando – e têm se tornado – tragédias.
O caso de Sarah Raissa Pereira de Castro, que morreu após inalar gás de um desodorante aerossol, não é isolado. Segundo levantamento informal do Instituto DimiCuida – entidade que alerta para o risco de brincadeiras perigosas, como os chamados jogos de não oxigenação –, esses desafios online já mataram ou feriram 56 crianças e adolescentes no Brasil desde 2014.
Em março deste ano, por exemplo, Brenda Sophia Melo de Santana, de 11 anos, também morreu em Pernambuco depois de inalar desodorante.
Segundo a psicóloga Bianca Orrico, responsável pelo canal de ajuda a vítimas de problemas na internet, mantido pela ONG Safernet, mesmo quando os pais criam estratégias para acompanhar o uso de celulares e tablets por crianças, o distanciamento geracional e a ausência de uma educação midiática dificultam que as famílias acompanhem esse uso de forma mais responsável.
A profissional também cita o impulsionamento de conteúdos como os desafios pelas plataformas digitais:
— Esses desafios são extremamente virais, e as plataformas acabam, por ser muito lucrativo, impulsionando esses conteúdos. Cada vez mais crianças e adolescentes se deparam com esses desafios perigosos, que têm a proposta de estimular comportamentos de risco, muitas vezes sob a falsa impressão de atitudes inofensivas ou até mesmo brincadeiras.
Apesar de a participação em desafios online não indicar necessariamente dependência do uso de telas, o psiquiatra Thiago Pianca, do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), destaca que esse é mais um risco associado ao uso abusivo de tecnologias:
— Inalar desodorante para ter alguma sensação diferente é algo antigo, porque contém substâncias voláteis que afetam o cérebro e, de certa forma, podem ser consideradas drogas de abuso, assim como outras inalantes, como cola de sapateiro ou lança-perfume. A questão é que esse tipo de droga é muito danoso, pois atua diretamente no cérebro e pode causar muitos problemas, até mesmo a morte.
Combinação perigosa
Bianca destaca que crianças e adolescentes são altamente influenciáveis e buscam aceitação entre os pares – a combinação perfeita para incentivá-los a participar de desafios que, ao mesmo tempo, podem conectá-los com novos amigos, aumentar sua popularidade e, em alguns casos, torná-los conhecidos com a viralização de uma publicação.
Antigamente, saber onde o filho estava era suficiente para prevenir algo mais sério. Hoje, a gente tem que saber onde a mente dele está
THIAGO PIANCA
Psiquiatra
Pianca explica que o sistema de controle de impulsos só se forma plenamente mais tarde, fazendo com que crianças e adolescentes tenham mais dificuldade para identificar riscos:
— O sistema que nos ajuda a controlar os impulsos só vai se desenvolver totalmente por volta dos 20 e poucos anos de idade. Então, nem mesmo o adolescente tem isso ainda bem estabelecido.
A psicóloga da Safernet alerta que usuários que estimulem ou disseminem esse tipo de desafio podem responder por induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; homicídio, se houver intenção direta de provocar a morte de alguém; ou exposição da vida ou da saúde de outra pessoa – todos crimes previstos no Código Penal.
Prevenção conjunta
A participação de pessoas tão jovens nesses desafios também sinaliza uma entrada precoce na puberdade, de acordo com Pianca, paralela a um acesso igualmente precoce às redes sociais. A forma de lidar com essa realidade e evitar tragédias precisa ser conjunta.
— Não é só responsabilidade da família, não é só responsabilidade da escola: é preciso um esforço coletivo de família, escola, Estado e das empresas (como o TikTok), para que esses ambientes digitais sejam desenvolvidos com estratégias de proteção, principalmente para adolescentes, mas também para crianças, pois sabemos que elas estão acessando esses espaços — observa a psicóloga Bianca.
No que diz respeito às famílias, o psiquiatra recomenda que os pais se aproximem dos filhos e saibam o que eles estão consumindo.
— Antigamente, saber onde o filho estava era suficiente para prevenir algo mais sério. Hoje, a gente tem que saber onde a mente dele está — pontua Pianca.
Educação midiática
Psicóloga e doutoranda em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, Marluci Meinhart afirma que, atualmente, a primeira grande instituição a chegar para educar e, até mesmo, constituir a identidade de uma criança é a mídia.
— A mídia chega antes da escola, da família, dos pais, cuidadores, das pessoas próximas. A partir do momento em que essa criança, desde bebê, olha para uma tela, já entendemos essa tela como parte da identidade dela. Por consequência, isso também se aplica ao adolescente. Esse tipo de desafio passa a fazer parte dessa relação com as telas — explica Marluci.
Por isso, ela reforça que é preciso estar cada vez mais atento ao papel que a tela desempenha na vida da criança ou do adolescente. Quando ela ocupa um espaço que deveria ser da família, o risco se torna maior.
Regulamentação
A Safernet defende a regulamentação de redes sociais como Instagram e TikTok, de forma a impedir o acesso de crianças a conteúdos desse tipo.
A entidade também defende a ampliação da educação e cidadania nas escolas – que, muitas vezes, diante da sobrecarga dos professores e da falta de formação, não se sentem aptas a tratar do assunto.
Para auxiliar as instituições de ensino, em parceria com o governo do Reino Unido, a ONG criou um site que disponibiliza um conjunto completo de planos de aula, com cinco módulos sobre o tema. Todo o material pode ser acessado e utilizado de forma gratuita neste link.