Em mais uma noite sem chuva no Sambódromo do Anhembi, na zona norte de São Paulo, a avenida foi palco para enredos de protestos, de valorização da cultura africana e da importância da resistência indígena. As homenagens a personalidades históricas da cena paulistana também foram destaques.
Entre a noite de sábado (1º) e a madrugada e manhã de domingo (2), as escolas Águia de Ouro, Vai-Vai, Mocidade Alegre, Império da Casa Verde, Acadêmicos do Tucuruvi, Estrela do Terceiro Milênio e Gaviões da Fiel contagiaram o público presente.
Como foi o segundo dia de desfiles do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo
Águia de Ouro faz homenagem a Benito di Paula

A Águia de Ouro foi a primeira escola a desfilar neste sábado. E não demorou para a agremiação ganhar as arquibancadas. A homenagem para o cantor, compositor e pianista Benito di Paula trouxe um samba-enredo com referências aos clássicos do sambista, como o personagem Charlie Brown e o Vestido de Cetim. A plateia acompanhou, aplaudiu e cantou com energia.
A comissão de frente trouxe coreógrafos que imitavam as teclas de um piano, com uma fantasia de duas cores, preta e branca, divididas dos pés à cabeça. Eles dançaram juntos com outro integrante que interpretou Benito. Nesta parte do desfile, os condutores do elemento cenográfico apresentaram um desalinhamento na hora de empurrar a alegoria. Na sequência, um grande abre-alas trouxe uma Águia, mascote da escola, com suas asas abertas e preenchidas - novamente - com as teclas de um piano.
Com um grande globo giratório no topo, o segundo carro foi preenchido de borboletas, seja por peças ou na fantasia dos destaques, lembrando uma das canções do artista (Proteção às Borboletas). O terceiro carro, em formato de sanfona branca, foi outra menção direta à música que Benito fez para Luiz Gonzaga, de quem era amigo. Um busto imponente do Rei do Baião também foi instalado na parte de cima do carro, sobre a sanfona.
O quarto e último carro trouxe Benito di Paula, aos 83 anos, na frente da alegoria com um terno rosa e fazendo acenos para a plateia. E no topo do carro, "seu amigo" Charlie Brown sobre um tambor atrás do Snoopy, deitado sobre o telhado da sua casinha. O destaque negativo foi a dificuldade que a escola encontrou para fazer a curva com a alegoria antes de entrar no Sambódromo.
Império da Casa Verde aborda contos clássicos e infantis

A Império da Casa Verde foi a segunda a desfilar na noite. O enredo escolhido pela escola foi o Cantando Contos: Reinos da Literatura, com a proposta de abordar os romances clássicos e as histórias infantis.
Uma vistosa comissão de frente, em referência às histórias "mentirosas da carochinha", apresentou interpretações de uma série de personagens, como Harry Potter, Coringa e os de cordel. Destaques para os integrantes suspensos como marionetes nas garras da escultura de um grande felino.
O primeiro carro alegórico trouxe princesas, além de tigres, unicórnios e máscaras de gnomos móveis. Na parte superior desta extensa e colorida alegoria, "flutuava" um Aladim, no seu tapete mágico voador. Em outro carro alegórico, a escola trouxe os considerados super-heróis de universos de Marvel e DC, como Batman, a Fera, Super-Homem e um Thor rodante na parte superior do carro.
Os personagens Dona Benta, Gato de Botas e sapos do conto da Cinderela foram lembrados em alas espalhadas pelo desfile. A escritora Clarice Lispector ganhou um espaço apenas seu na avenida. A Bateria, com todos vestidos de Coringa, seguiram atrás da rainha Theba Pytilla, que cruzou a avenida sambando fantasiada de Mulher-Gato.
Por dois momentos a escola fez duas longas paradas da bateria, deixando o samba-enredo ser puxado à capela. O publicou aderiu, mas de forma mais tímida. A força dos cantos vinha, principalmente, dos integrantes da própria agremiação.
Mocidade Alegre mostra força na avenida e nas arquibancadas

Dona de 12 títulos na elite do carnaval de São Paulo, a Mocidade Alegre entrou na avenida mostrando a força que possui nas arquibancadas. A terceira escola da noite começou ainda no sábado, com o objetivo de conquistar o terceiro título seguido. Se acontecer, será a terceira vez na história da escola (1971-1973, 2012-2014 e 2023-2025).
O objetivo da escolha do tema foi celebrar a fé brasileira por meio de um olhar histórico e cultural que valoriza a negritude do universo afro-religioso, tendo na figura da baiana a reunião de todos esses elementos. Além disso, critica também o que chama apagamento cultural promovido contra costumes, símbolos e artefatos de religiões de matriz africana.
À frente do carro abre-alas, a médica Thelminha, que venceu o Big Brother Brasil em 2020, desfilou pela avenida como destaque de chão como guardiã das tradições espirituais Malês. O primeiro carro alegórico a ser apresentado desfilou com muitas cores douradas. Foi a forma que a Mocidade encontrou para, segundo a escola, representar o "imponente e vasto continente africano ancestral".
Já a segunda alegoria, chamada de Altares das Irmandades Negras, retratou um processo pelo qual as religiões de matriz africana tiveram que passar ao longo da história. Nesta alegoria, a Mocidade mostrou búzios amarrados em cordões fixados em cruzes de madeira.
A quarta alegoria trazia elementos da Mocidade Alegre. Uma mão estendida, segurando uma estrela, representava o 13° título tão almejado pela escola. Nas laterais, membros da velha guarda da agremiação também desfilaram. E na parte traseira do carro, foi colocada uma escultura das mãos de Solange Bichara, presidente da escola, com os dedos entrelaçados com um terço em volta dos pulsos. O gesto é uma marca da presidente.
A escola viveu momentos de tensão no final do desfile. O quarto e último carro aparentou problemas com o motor. Muitas pessoas tiveram que empurrar a alegoria, que chegou a ficar desalinhada na passarela. Apesar disso, a Morada do Samba conseguiu concluir o desfile dentro do prazo, com 1 minuto e 8 segundos para estourar o tempo.
Gaviões da Fiel coloca na avenida desfile de máscaras africanas

A Gaviões da Fiel, quarta a desfilar, apresentou o enredo Irin Ajó Emi Ojisé, que em tradução do iorubá (um grupo étnico-linguístico da África) significa A Viagem do Espírito Mensageiro. A proposta foi contar a história de Orumilá, considerado a divindade da sabedoria, que peregrinou pela África compartilhando ensinamento, conhecimento e profecias por meio de máscaras.
As alas representaram um local onde Orumilá esteve e apresentou a máscara que a divindade entregou de acordo com cada situação.
Na ala das crianças, que receberam a máscara Kota, por exemplo, o enredo diz que quando Orumilá esteve no Gabão apreciou por lá um ritual de iniciação de garotos e garotas Kotas. E isso o fez entregar máscaras cujo ensinamento prevalente é o da humildade.
O carro Abre-Alas veio com o tradicional Gavião segurando o distintivo do Corinthians com grandes máscaras Bwa nas laterais em meio ao pântano de Nanã, representado por simulações de árvores e plantas. Foi neste pântano onde Orumilá foi com seu povo para conceder a eles as suas máscaras próprias para o cuidado com a natureza.
Na terceira alegoria, a Gaviões contou a história de quando Exu e Aluvaiá (representados com a cabeça na parte da frente do carro) incendiaram a baía de Luanda para matar os responsáveis por escravizar angolanos. A alegoria mostrou, com luzes vermelhas e destaques com fantasias simbolizando chamas, a destruição de barcos.
A já animada torcida da Gaviões, que estendeu uma série de faixas de lugares diferentes da capital e do Estado, se empolgou ainda mais com a passagem da Rainha de Bateria, Sabrina Sato, pela avenida.
Tucuruvi canta sobre a resistência indígena e o Manto Tupinambá

A Acadêmicos do Tucuruvi trouxe a temática indígena cortejo deste quinto desfile. O enredo Assojaba - A busca pelo manto conta a história do Manto Tupinambá, uma vestimenta sagrada para o povo homônimo que foi exposta por mais de 300 anos em um museu na Dinamarca e devolvida ao Brasil em 2024.
O manto apareceu representado logo na comissão de frente. O carro abre alas se destacou pelo grande indígena, confeccionado por uma espécie de pano azulado - uma das cores da escola - transparente. Do seu ombro direito descia uma serpente móvel. Ao redor da alegoria, um série de apanhador de sonhos foram fixados
Integrantes da escola, vestidos de indígenas, sentaram sobre araras na segunda alegoria, enquanto uma imagem impactante tomou conta do terceiro carro: indígenas esculpidos com expressões de ira, arrancando a cabeça de um monarca.
A representação aparentou indicar uma reação dos nativos contra as mortes provocadas pelos embates de indígenas de Pindorama (nomenclatura usada por Tupis-Guaranis para designar o Brasil) contra os europeus portugueses durante o período de colonização do país.
O quarto e último carro ergueu uma de suas destaques a um dos pontos mais altos da alegoria. Atrás dela, foi encaixada uma escultura rodante de um cocar que, ao girar, simulava um sol. Espalhado pela alegoria, integrantes desfilavam com cartazes na mão dizendo "O Manto voltou".
Estrela do Terceiro Milênio desfila contra o preconceito
O enredo escolhido pela Estrela do Terceiro Milênio, sexta e penúltima escola a passar pelo Sambódromo do Anhembi, foi Muito além do arco-íris, tire o preconceito do caminho que nós vamos passar com amor.
Com um desfile crítico e satírico, a escola protestou contra as práticas de intolerância e repressão, especialmente as que vão contra a liberdade sexual. A bandeira do arco-íris, que representa a comunidade LGBT+, foi usada em diferentes momentos do desfiles, tanto em fantasias quanto em alegorias.
Nas alas, o "Kit Gay" e representação da "mamadeira de piroca", boatos criados durante campanhas eleitorais, foram lembrados. Homens de rosa brincando de bonecas e mulheres de azul com carrinhos nas mãos também foram levados ao sambódromo.
No segundo carro alegórico, a escola trouxe uma homenagem ao Dzi Croquettes, grupo de teatro dos anos 1970 que se apresentava com um visual mais exuberante, trajes femininos e maquiagem.
Mesmo apresentando um desfile mais modesto no acabamento de fantasias e alegorias, a Estrela do Terceiro Milênio divertiu a plateia, apesar dos sinais de cansaço evidentes no público.
Vai-Vai encanta com Zé Celso
A escola Vai-Vai entrou no sambódromo com o céu já alaranjado pelo nascer do sol. A maior campeã do carnaval paulista, e a última a desfilar pelo grupo especial, levou para seu cortejo uma homenagem ao ator, diretor e dramaturgo Zé Celso. O enredo foi batizado de O Xamã Devorado y a Deglutição Bacante de Quem Ousou Sonhar Desordem.
Conforme a escola, o desfile se inspirou no conceito da antropofagia, no qual a agremiação devora o Zé Celso em um banquete para se nutrir de toda sua genialidade, cultura e potência artística. No primeiro carro, a alegoria apresentou duas mesas que serviam de repouso para partes de um corpo esquartejado. Cabeça, cérebro, pés, pernas e braços eram servidos como pratos para um banquete.
À frente, uma coroa rodante (símbolo do Vai-Vai) tinha cachos de uvas fixadas. A uva foi usada como símbolo de Baco, Deus do Teatro e do Vinho na mitologia romana. Ao lado deste acessório, destaques dançavam de forma libertina e sem pudores, como se estivessem em uma festa.
Na alegoria seguinte, em um carro com as cores da agremiação (preto e branco), feita uma representação do rosto de Zé Celso esculpido com vários pontos de interrogação ao redor - para representar que na sua cabeça havia mais dúvidas do que certezas
Depois de fazer na terceira alegoria uma homenagem para Cacilda Becker, atriz que marcou a trajetória de Zé Celso, a Vai-Vai encerrou o desfile com um carro que uniu fotos do dramaturgo, rostos esculpidos com a língua de fora (uma de suas marcas) e elementos da escola, como uma grande coroa rodante.
A proposta foi mostrar a importância e as influências de Zé para o bairro Bixiga, sede da agremiação, na região central da capital. Por lá, o artista fez das ruas um palco aberto, segundo a escola.
Uma longa fila de convidados seguiram atrás dos carros, acenando para uma plateia que já tinham sacado os óculos escuros para enxergar a avenida. A escola foi uma das mais aplaudidas e cantadas do começo ao fim da apresentação.