As escolas de samba do Grupo Especial de São Paulo fizeram um primeiro dia de desfile no Sambódromo do Anhembi, na zona norte da cidade, marcado pela valorização das religiões de matriz africana, por homenagens ao cantor Cazuza, pela importância dos jogos na história da humanidade e pela inspiração na canção Aquarela como enredo para cantar a vida e o luto.
Em um período sem chuvas, entre a noite de sexta-feira (28), e a madrugada e manhã de sábado (1º), com temperatura agradável, as escolas conseguiram contagiar o público, que compareceu em peso ao Sambódromo - mas sem preencher todos os espaços das arquibancadas. O primeiro dia teve a presença de 32 mil pessoas, de acordo com a Prefeitura de São Paulo.
Como foi o primeiro dia de desfiles do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo
Filhos de Gandhi abrem a festa
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A Colorado do Brás iniciou seu desfile com uma comissão de frente trazendo os estivadores, fundadores do bloco Filhos de Gandhi, tradicional afoxé da Bahia realizado desde 1940, escolhido como enredo pela escola. Deusas indianas e também representações de Gilberto Gil, Clara Nunes e Caetano Veloso, artistas com ligações ao afoxé e às religiões de matriz-africana, também apareceram no início de cortejo.
À frente de todos, uma representação de Padê de Exú, entidade para qual os membros do afoxé recorrem para permitir permissão antes de iniciar as festividades. Atrás, a figura de Mahatma Gandhi, pacifista que morreu em 1948 - um ano antes da fundação do afoxé.
O carro abre-alas trouxe quatro grandes elefantes guiados por um deus indiano e, atrás, uma imponente escultura de Gandhi com as mãos em gesto de agradecimento. Na sequência, a ala Comendo Coentro relembra as origens do afoxé, cujo primeiro nome, antes de ser batizado de Filhos de Gandhi, foi justamente Comendo Coentro.
A alegoria seguinte trouxe uma grande escultura de Iemanjá, a protetora dos pescadores. Com luzes azuladas, e os integrantes fazendo coreografias com os guarda-chuvas, ao ritmo do samba-enredo, o carro alegórico soltava bolhas de sabão que se espalharam pelo Sambódromo.
Outra ala que a Colorado trouxe para a avenida foi o Camafeu Oxossi, em homenagem a Ápio Patrocínio, que assume a presidência do afoxé após uma crise financeira na década de 1960, e se torna o responsável por dar as diretrizes espirituais do bloco.
O terceiro carro alegórico trouxe representações do Padê Exú e de outros rituais que são evocados para trazer proteção ao bloco, que foi seguido pela ala Filhos de Gandhi, com as roupas típicas do afoxé, com camisetas brancas, detalhadas em azul e turbante.
A última alegoria, que fechou o cortejo da Colorado do Brás, ergueu o Pelourinho, bairro do centro histórico de Salvador com uma grande pomba branca de asas abertas, simbolizando a paz - um dos princípios do afoxé, que encontrou no pacifismo indiano uma direção para o bloco. O carro, com crianças e representações de artistas brasileiras, desfilou pela avenida borrifando cheiro de alfazema para a plateia.
Barroca canta e solta pipoca em desfile sobre Iansã
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A Barroca Zona Sul, segunda escola a desfilar na noite, trouxe à passarela a história de Iansã (também chamada de Oyá) e seus nove filhos. Iansã é uma orixá cultuada em diferentes religiões de matriz africana, como Candomblé e Umbanda.
Está associada aos ventos, aos raios e é reverenciada como a representação da força feminina, da liberdade e da capacidade de ser uma brisa (calma e leve) como tempestade. A espada e búfalo são outros dois elementos ligados à divindade, representados em um dos carros da agremiação. Oyá possui nove filhos, os Oruns, nove céus sagrados, onde habitam também outro orixás e encantados.
Na comissão de frente, a escola trouxe nove andarilhos, de roupas surradas, que se transformam em Egungum (termo das religiões de matriz africana que designa os espíritos de pessoas mortas importantes, que retornam à terra), alterando as vestes para fantasias coloridas. Com eles, também estavam mulheres interpretando Iansãs, com roupas de cores diferentes, cada uma com uma representatividade diferente.
Na Ala das Baianas, a Barroca Zona Sul vestiu suas integrantes com fantasias que fazem alusão às oferendas para Iansã, com acarajés e rosas vermelhas na cabeça e costeiro, velas na saia.
Outras alas remetiam a outros orixás que fizeram parte da história da Oyá: Ogum, orixá guerreiro representado pela espada, que foi um de seus maridos; Exú que a ensinou os segredos da magia - a fantasia estava representada por cabaças (onde se armazenava as poções mágicas); e Oxossi o orixá dono das matas, que ensinou para Iansã as técnicas de caça - por esse motivo, as fantasias dos seus integrantes traziam arco e flecha, folhagens pela roupa, e uma pele de onça nos ombros.
Nas alegorias, destaque para o segundo carro, que representou o portal de entrada do Palácio de Xangô, com esculturas frontais de leões e machados que decoram o pórtico de entrada. Na parte central (segundo piso), um grupo cênico dançou uma coreografia com a fantasia que representa o ritual de cura de Obaluaê.
A história de Iansã conta que, certa vez, ela foi capaz de curar as feridas Obaluaê e transformar as suas feridas e chuvas de pipoca. E foi com esta passagem da alegoria que a escola surpreendeu os presentes no Anhembi, com uma literal chuva de pipoca que foram despejadas ao público.
Dragões usa "Aquarela" para contagiar arquibancadas do Sambódromo
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A Dragões da Real foi a terceira a desfilar no Sambódromo. Inspirada na canção Aquarela, marcada na voz do artista Toquinho, a escola levou para a avenida o enredo A Vida É Um Sonho Pintado em Aquarela.
O carnavalesco Jorge Freitas usou os trechos de canção para explicar o ciclo da vida e fazer uma homenagem ao neto Jorginho, de oito anos, que morreu em abril do ano passado, vítima de uma síndrome rara. Ele era conhecido como o Astronauta. Segundo a escola, o desfile da Dragões da Real foi uma oportunidade para "Jorginho ser o astronauta que sempre quis ser".
Logo no começo da apresentação, a agremiação surpreendeu a arquibancada com a comissão de frente. Em um tripé adornado por astronautas e relógios, a escola fez voar um pequeno foguete, enquanto uma criança vestida de camiseta amarela e sol se deslumbrava, correndo à frente da alegoria.
O primeiro carro alegórico, extenso, passou pelo público puxado por três grandes cisnes, e preenchida por uma série de elementos rodantes e móveis - efeito que se repetiria nas demais alegorias seguintes.
Com menções diretas à canção Aquarela (Numa folha qualquer/Vou desenhar o meu castelo e Sonhar e perceber/Se um pinguinho de tinta cair no papel/Quem sabe, imaginar/Uma linda gaivota voando no céu), o samba-enredo, puxado pelo intérprete Renê Sobral, convidava o público a cantar pela esperança (Ainda é tempo de recomeçar). De refrão fácil, a música contagiou os foliões, que sustentaram um canto à capela quando a bateria fez a sua parada.
A segunda alegoria trouxe um compasso sobre um globo rodante, novamente remetendo à música que, com um giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo, além de um barco à vela branco, navegando por uma representação de um mar. O terceiro carro novamente trouxe uma menção marcante às aeronaves, usadas na canção original de Aquarela como metáfora de um futuro que tentamos pilotar.
Mancha Verde explora a fé e o profano presentes na Bahia
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A Mancha Verde foi a quarta escola a passar pelo Sambódromo. O enredo escolhido pela bicampeã do carnaval foi Bahia, da Fé ao Profano, com a proposta de demonstrar como as festas religiosas, tanto católicas como de matrizes africanas, se misturam com a profanidade da Bahia.
A comissão de frente apresentou essa simbiose, ao fazer, por meio de um tripé giratório, uma representação da procissão das escadarias da igreja do Senhor do Bonfim: de um lado, a igreja (destino final da procissão) e do outro, os bares, que ficavam no caminho das peregrinações até o templo religioso.
No carro abre-alas, o maior apresentado pela escola, destaque para os peixes suntuosos na lateral da alegoria (os peixes de água doce de oxum), a representação de Iemanjá, na parte traseira do carro, como a maior e mais alta escultura da peça, além dos telões com imagens do fundo do mar na parte lateral. A proposta da Mancha Verde foi trazer para a avenida a devoção à Iemanjá, celebrada em festas que se misturam com a fé.
Com duas cabeças de Exu, se unindo e formando um arco com uma boca em cada extremidade, a segunda alegoria da Mancha Verde apresentou os mercados e variedade culinária da Bahia. Peixes, ervas e bebidas eram vendidas simulando a fachada do Mercado Modelo, um dos mais tradicionais de Salvador.
O enredo da Mancha, de mostrar a mistura de diferentes religiões e suas festas, também foi explorado nas fantasias. Na ala das baianas, a representação de Oxum - orixá da beleza e fertilidade - teve como vestimenta saias azuis com uma simulação de peixe na cintura.
Em outra ala, os integrantes desfilaram com adereços com representação de pimenta e dendê; além da ala destinada à São Bartolomeu, padroeiro ligado à produção e garantia do pão, alimento considerado sagrado para a religião católica.
Tatuapé pede por mais Justiça em seu desfile
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Terceira colocada no carnaval de 2024, a Acadêmicos do Tatuapé apostou no enredo Justiça - A Injustiça Num Lugar Qualquer É Uma Ameaça à Justiça Em Todo Lugar. O cortejo buscou apresentar a história da Justiça e como ela foi sendo construída ao longo do tempo.
Na fantasia da Ala Islâmica, os integrantes da escola apresentaram uma a primeira versão do Alcorão escritas em uma representação de pergaminho, anexadas às costas dos foliões. Em outra ala, a Tatuapé explorou a mudança do conceito de Justiça ao defender os conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade - gravados em francês em bandeiras da França que também faziam parte de uma das fantasias.
Outra fantasia que chamou a atenção foi a que representou a Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988, e que estabeleceu um marco no processo de redemocratização do país. As vestimentas, nas cores verde, amarelo e azul, trouxeram alguns direitos conquistados com a nova medida e com a capa da própria constituição anexada à fantasia.
Das alegorias, a terceira trouxe uma imagem impactante. O carro apresentou a estátua da Justiça do Supremo Tribunal Federal com uma criança baleada, vítima de bala perdida. Muitos foliões, presentes nas arquibancadas e camarotes, sacaram os celulares para fotografar e filmar a passagem da peça.
Na parte superior do carro, sobre um piso que representa o Congresso Nacional, a alegoria se dividiu em duas partes: ricos, endinheirados de um lado; pessoas menos abastadas de outro. No lado menos favorecido, os integrantes carregam cartazes, com frases do tipo: "Meu suor te deixa rico", "Com quantos pobres se faz um rico?" e "Eu sou uma sobrevivente" - uma tentativa de explorar a Justiça como instrumento de igualdade ou, até, de ampliação de uma desigualdade quando não bem exercida.
A alegoria final, a escola apresentou uma esperança: estátuas imponentes de Mandela e Martin Luther King abraçados, dois ativistas por um mundo mais justo. Eles se encontram-se no topo do carro. Um pouco mais à frente da dupla, a escola trouxe para a alegoria um tatu (mascote da escola), também esculpido, vestido de toga. À frente do carro, a representação de Arcanjo Gabriel.
Na parte de trás do carro, a Tatuapé escreveu uma mensagem, um "sonho que transcende o carnaval": "Um sonho de igualdade, respeito e reconhecimento, onde a arte, a cultura e a tradição das escolas de samba sejam celebradas sem preconceitos ou julgamentos".
Rosas de Ouro contagia com enredo sobre os jogos
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Rosas de Ouro entrou no Sambódromo perto das 5h, como a sexta e penúltima escola a desfilar deste primeiro dia. Mesmo com as arquibancadas com espaços já esvaziados, o enredo Rosas de Ouro em uma Grande Jogada fez contagiou o público.
O refrão do samba-enredo ("Vista a fantasia!/Bom é ser criança/E conectar o mundo na palma da mão/Vai reflorescer a Rosa do meu coração!"), ganhou a plateia, que cantou com a escola até a linha final ser cruzada.
A passarela foi tomada pela tradicional cor da agremiação: o rosa - usado com abundância em alegorias e fantasias - junto cores metalizadas (azul, prata e amarelo, principalmente).
Na comissão de frente, um tripé serviu de alicerce para a apresentação de uma tradicional máquina de cassino, que, acionada, formava combinações de três figuras iguais.
O tema dos jogos de azar, tão debatido nos tempos atuais, deu lugar a outros tipos de brincadeiras. Alegorias com peças de xadrez, com torres e cavalos esculpidos, foram levados pela Rosa para a avenida. Assim como uma ala dedicada para o jogo Banco Imobiliário.
Antes da última alegoria, um pac-man inflável passou pela passarela amarrado por um barbante e sendo jogado de um lado para o outro pelo vento.
Atrás dele, o quarto e último carro alegórico passou pelo sambódromo com uma série de personagens de jogos de videogame, como Mario Bros, representado por esculturas e destaques. Pikachu, bichinho ícone do desenho Pokémon, reforçou a mensagem da presença dos jogos eletrônicos. Na lateral do carro, crianças sentadas com joystick (controles de Playstation) também faziam a composição da alegoria.
Camisa Verde e Branco homenageia Cazuza com presença da mãe do artista
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Ao puxar o verso "Pro dia nascer feliz", o intérprete da Camisa Verde e Branco, Igor Vianna, indicava não apenas o enredo da escola, mas também o horário em que a agremiação entrava na avenida. Com o sol iluminando o Sambódromo, o grupo carnavalesco da Barra Funda fez o sétimo e último desfile do primeiro dia de cortejos do carnaval.
Com o enredo O Tempo Não Para! Cazuza - O Poeta Vive!, a escola homenageou o músico e compositor que morreu em 1990, vítima de AIDS, aos 32 anos.
Para o desfile, a escola apresentou uma comissão de frente com coreógrafos e um tripé revestidos de papéis simulando as composições de Cazuza. Uma criança brincava e subia uma escada da alegoria, onde se encontrava um personagem interpretando o músico.
A escola também levou fantasias com adereços que remetem às músicas do cantor, como Exagerado e o Tempo Não Pára.
Mas alegorias, a escola deu espaço para banda Barão Vermelho, grupo onde Cazuza atuava, e contou a importância dos personagens da década de 1980, quando o artista atuou. Para isso, membros da escola representaram artistas como Rita Lee, Chacrinha e Elke Maravilha, ícones da época e contemporâneas de Cazuza.
No último carro alegórico, ao lado de fotos do cantor em diferentes momentos da vida, como infância e adolescência, Dona Lucinha, mãe de Cazuza, foi posicionada à frente da alegoria. Ela acenou e mandou beijos para o público, que retribuo os gestos de carinho.