
Até que estivessem prontas para atravessar a passarela no Complexo Cultural do Porto Seco, as escolas de samba e as comunidades precisaram superar os prejuízos físicos, materiais e emocionais causados pela enchente histórica de maio de 2024.
Assim como milhares de moradias, diversas quadras de ensaios foram severamente afetadas. A reconstrução foi dura, mas movida pela paixão pelo Carnaval de Porto Alegre.
A reportagem de Zero Hora conversou com quem viu a água levar tudo, até fantasias, e conferiu como seis agremiações conseguiram se reerguer da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul.
"Pensei que não teria Carnaval neste ano"
Juliana Andrade é musa da bateria da Fidalgos e Aristocratas e ex-moradora do bairro Rio Branco, em Canoas, cidade onde foi a Rainha do Carnaval de 2014. A água tomou conta do seu apartamento, destruindo até mesmo fantasias que ainda estavam intactas.
— Foram dias bem pesados. Perdi as coisas de casa, todas as minhas fantasias, algumas até que nem tinha usado ainda. Pensei que não teria Carnaval para mim neste ano — conta.
Para Juliana, tornou-se um Carnaval de superação. Foi necessário fazer terapia para manter o equilíbrio mental e se reerguer. Nem tudo o que se perdeu pôde ser recuperado:
— Foi bem difícil para mim. Muitos itens tinham valor emocional, inclusive as faixas dos concursos que participei durante a minha vida.
Moradora do bairro Cohab-Santa Rita, em Guaíba, a primeira porta-estandarte da Imperadores do Samba, Sander Lima, também vivenciou a dura realidade de ter sua casa invadida pela enchente:
— Chorava, preocupada com as minhas fantasias, porque elas contam a minha história. Meu esposo dizia: "não acredito que tu estás chorando pelas roupas", e eu respondia: "sim, porque os móveis eu entro na loja e compro em 20 vezes, mas cada fantasia tem um significado e um momento". Quando ele conseguiu entrar na nossa casa, me deu a notícia de que a água havia tomado conta de tudo, menos do meu altar de Iemanjá e da minha arara com as roupas de Carnaval.
A escola do bairro, a Academia de Samba Cohab-Santa Rita, que foi fundada por Sander, também sofreu perdas materiais. Apesar de não ter uma quadra fixa, o prejuízo foi significativo e afetou o desfile deste ano.
— Todas as fantasias do desfile do ano passado estavam na casa de um dos nossos diretores. Elas estavam novas, tínhamos guardado, reciclado e arrumado, mas perdemos todas. Desfilamos no sábado passado (8), no Grupo Bronze, sem alegorias. Tanto Imperadores quanto Cohab-Santa Rita têm comunidades fortes. O mais importante é lembrar que toda tempestade passou — completou Sander.
Quando eu cheguei na Voluntários Avistei meu santuário, não me senti sozinho E a única água que vai transbordar É a lágrima de voltar para o nosso ninho
BAMBAS DA ORGIA
Trecho do samba-enredo 2025
Esses são versos que serão cantados a plenos pulmões pelo intérprete Bruno Martins, pela harmonia e por todos os componentes de Bambas da Orgia, a escola mais antiga em atividade em Porto Alegre, por volta das 5h de domingo (16).
Isso porque a escola azul e branca é a penúltima a desfilar na segunda noite de apresentações. Embora o enredo não seja sobre a enchente, a escola quis destacar esse episódio, que tanto afetou o “ninho da águia” – como é chamada sua quadra, localizada na Avenida Voluntários da Pátria, no Centro Histórico de Porto Alegre.
Fátima Sampaio assumiu a presidência do Bambas da Orgia em uma posse virtual, pois as águas da enchente haviam invadido a quadra poucos dias antes da data marcada. O primeiro desafio foi atuar no momento mais difícil da história da escola.
— Conseguimos entrar na quadra apenas no dia 1º de junho, quase um mês depois. Encontramos tudo coberto por lama, freezers uns por cima dos outros, instrumentos danificados. Todos os móveis foram perdidos. A gente encostava e eles se desmanchavam. Fui entrando e pensando: "estou em pé e vou continuar em pé". Afinal, se a presidente naquele momento se desesperasse, todos também iriam, porque estávamos todos em choque.
A quadra de ensaios só reabriu ao público em outubro. Ainda há reformas, pinturas e ajustes a serem feitos após o desfile deste ano. Fora do local, há também um trabalho minucioso de preservação da memória da azul e branco.
— Além do prejuízo material, tivemos uma perda na referência histórica da escola. Muitos documentos foram extraviados, mas estamos conseguindo restaurar alguns com a ajuda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A presidente estima que todas as etapas de recuperação não custarão menos de R$ 200 mil. No entanto, ela destaca o amor da nação bambista para levar a escola à avenida:
— Bambas da Orgia, mesmo com a enchente, preparou um grande Carnaval. Temos pessoas abnegadas, que amam o Bambas. Abrimos as portas para todos, independentemente da posição política dentro da escola.
Na Avenida Padre Cacique, no bairro Menino Deus, outras duas escolas tradicionais sofreram com os estragos causados pelas águas. A Imperadores do Samba contabilizou um prejuízo de R$ 70 mil, incluindo reparos no telhado, freezer, móveis, elétrica e hidráulica.
A presidente Luana Costa dividiu o sentimento de tristeza com a necessidade de recuperar o espaço o mais rápido possível:
— Tentamos nos restabelecer rapidamente para tornar o ambiente agradável, permitindo que as pessoas que ainda viviam aquele trauma pudessem esquecer aquele filme de terror, mesmo que por algumas horas. Em julho, conseguimos realizar um ensaio solidário e distribuir colchões e cestas básicas. Tudo isso foi um episódio horrível, mas superamos e saímos mais unidos e fortes dessa situação.
"Mais unidos do que nunca"
Na vizinha verde e rosa, Nádia Narciso, presidente da Academia de Samba Praiana, conta que toda a quadra precisou ser reformada e que ainda faltam reparos no telhado, que sofreu uma nova queda durante um temporal em janeiro deste ano.
— Foram dias de muita tristeza e dor. Me senti impotente. Não sabia nem por onde começar. Mas foi preciso coragem e força. Perdemos todos os camarotes, porque eram de madeira, então tivemos que reformá-los, além do piso, paredes, cozinha, banheiro, telhado, palco e fachada — afirma, contabilizando mais de R$ 200 mil em prejuízo.
Os integrantes da Império da Zona Norte não retornarão mais à sede que funcionava na Avenida Sertório. Em janeiro de 2024, um temporal causou a queda do telhado e outros danos. Meses depois, a enchente agravou ainda mais o prejuízo. Sem quadra durante todo esse período, os ensaios ocorreram em locais improvisados, inclusive dentro do barracão onde as alegorias são produzidas, no Porto Seco.
Ana Marilda Belos, baluarte da escola e porta-bandeira, afirma que a sensação é de vitória ao ver o Império da Zona Norte conseguindo ir para a avenida, especialmente neste ano em que a escola completa 50 anos.
— É um sentimento de retomada, de que estamos partindo para um grande desfile. Estamos mais unidos do que nunca. Estou na escola há mais de três décadas e me sinto feliz ao ver que até imperianos que não víamos há muito tempo voltaram para dar força e colaborar. Que possamos retornar ao Grupo Especial e conquistar uma nova quadra — afirmou.
"Carnaval é cultural, mas também é social"
Naquela ocasião, o Complexo Cultural do Porto Seco também serviu como centro de doações para facilitar a logística. No momento mais crítico da catástrofe, famílias dormiam em meio a carros alegóricos ainda não desmontados, que também serviam de apoio para marmitas, roupas e itens arrecadados. O espaço, conhecido pela alegria, tornou-se um ponto de acolhimento para quem não tinha mais nada.
A União da Vila do IAPI, localizada na Avenida Bernardino Silveira Amorim, no bairro Santa Rosa de Lima, viu as águas chegarem a poucos metros. A quadra permaneceu seca, mas muitas famílias da comunidade não tiveram a mesma sorte. Conforme o presidente Jorge Sodré, a agremiação tornou-se um ponto de apoio para os atingidos no extremo norte da Capital:
— Nós éramos o último ponto com luz naquela região. Como a nossa quadra tem dois andares, fizemos um alojamento que abrigou 132 pessoas. Instalamos uma cozinha com capacidade de servir até 400 marmitas diárias, além de recebermos doações de todos os cantos do país, inclusive de escolas de samba de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e outros locais. No nosso barracão no Porto Seco, abrigamos 240 pets, entre cachorros e gatos. Carnaval é cultural, mas também é social.
Em São Leopoldo, o Rio dos Sinos invadiu a quadra da Império do Sol, que, desde os anos 1990, desfila no Carnaval de Porto Alegre. Em janeiro de 2025, a escola enfrentou um novo desafio: o galpão no Porto Seco foi destruído por um incêndio.
O presidente Alzemiro da Silva, o Miro, falou sobre o desafio que enfrentou nas últimas semanas após pedir que houvesse um mutirão da comunidade para ajudar a colocar a "Majestosa do Vale" pronta para desfilar na elite, por ter sido a campeã da série prata em 2024.
— O pessoal correspondeu em ajudar, mas por não ter o telhado e a iluminação (consequência do incêndio), tivemos um pouco de dificuldade, porque a maioria das pessoas queria vir ajudar à noite, porque trabalham durante o dia. A energia da escola é muito forte — comentou.
Sobre a quadra de ensaios, o espaço foi recuperado, embora ainda haja marcas, relembra Miro:
— Houve perda total. Materiais como tecidos, equipamentos domésticos, instrumentos, fantasias, sem contar com a destruição de muros, cozinha, copa, banheiros e telhado.
Se a solidariedade foi fundamental para que a população gaúcha superasse a tragédia, o mesmo ocorreu no Carnaval. A união das comunidades não se limitou à recuperação das quadras, mas também serviu de suporte para as muitas pessoas ligadas às escolas de samba que foram prejudicadas.
No desfile deste ano, cada integrante vai cantar com ainda mais força. Se a garra nunca faltou, agora transbordará. Depois de tantos desafios superados, chegou o momento de mostrar o que há de melhor, e com muita alegria.
Afinal, nunca fizeram tanto sentido os históricos versos: "e a tristeza nem pode pensar em chegar."
Entre talentos e tradições
Na série de reportagens, mostramos como a cadeia produtiva do Carnaval de Porto Alegre é a fonte de renda para profissionais de diversos segmentos. Nos barracões do Porto Seco, a rotina de trabalho é incessante.
Conhecemos também algumas das mulheres que fazem a diferença em funções tradicionalmente ocupadas por homens, provando que elas podem estar onde desejarem.
Além disso, há as crianças que sonham em ser estrelas do nosso Carnaval. Entrevistamos aqueles que representam o futuro e o presente do Carnaval, e também os responsáveis por tornar esses sonhos realidade, como na oficina para formar casais de mestre-sala e porta-bandeira e ensinar instrumentos da bateria.
O Carnaval de Porto Alegre é rico em talentos, histórias, tradições familiares e oportunidades para quem souber enxergá-lo com o carinho e a atenção que merece.
Desfiles
Na sexta-feira (14), desfilam pelo grupo Prata: Filhos de Maria, Protegidos da Princesa Isabel e Realeza. Pelo grupo Ouro, desfilam no local Fidalgos e Aristocratas, Acadêmicos de Gravataí, Copacabana, Imperadores do Samba e União da Vila do IAPI.
No sábado (15), os desfiles do grupo Prata são: Academia de Samba Praiana, Unidos de Vila Mapa, Império da Zona Norte e União da Tinga. Pelo grupo Ouro, desfilam Império do Sol, Unidos de Vila Isabel, Estado Maior da Restinga, Bambas da Orgia e Imperatriz Dona Leopoldina.
Ingressos
Os ingressos para frisas e camarotes estão à venda na plataforma Sympla (com taxa de conveniência) e na bilheteria oficial, na loja Planeta Surf do Bourbon Wallig (sem taxa).
Assim como nos anos anteriores, as arquibancadas terão entrada gratuita, por ordem de chegada. Este ano, serão disponibilizados 6.480 lugares.
Leia a série completa do Carnaval de Porto Alegre
- "Dá orgulho de ver": mão de obra das comunidades torna possíveis os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre
- Da produção do enredo ao reger da bateria: mulheres conquistam novos espaços no Carnaval de Porto Alegre
- Crianças aprendem desde cedo a ter samba no pé e garantem o futuro do Carnaval de Porto Alegre