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O aposentado Aderi dos Santos Nunes, 84 anos, conhece como poucos os mistérios vindos das águas de tons escuros da Lagoa dos Barros, situada às margens da freeway, entre Santo Antônio da Patrulha e Osório, no litoral norte do Estado. Histórias contadas de pai para filho, de geração para geração, povoam o imaginário dos moradores da região.
Seu Aderi morou a vida inteira no bairro Laranjeiras, em Osório. Sua casa com quintal acolhedor e circundada por moradias de vizinhos e parentes fica a cerca de 900 metros de distância do local onde um caso verídico de feminicídio ocorreu há 85 anos. Um crime que saiu das páginas policiais para aparições com descrições desconcertantes e sobrenaturais. Trata-se da lenda da Noiva da Lagoa dos Barros.
— Eu, pessoalmente, nunca vi a noiva. Mas nasci e me criei nesse terreno onde estamos. Naquele tempo, não existia nada. A comunicação era muito precária e a estrada RS-030 havia sido recém-inaugurada — recorda o aposentado, sentado em uma cadeira em frente à porta aberta de sua moradia.
Conforme narra, as pessoas da região trabalhavam em lavouras durante o dia e não tinham sequer luz em casa. As poucas distrações consistiam em visitas noturnas de familiares, o que exigia deslocamentos por picadas e caminhos de chão batido. Foi em uma ocasião assim, quando apenas as estrelas do céu escuro guiavam o seu pai (Henrique José Nunes, já falecido), que algo fora do comum teria acontecido.
— Numa dessas noites, meu pai foi visitar um compadre. Voltando sozinho do passeio já tarde da noite, pela RS-030, em determinado lugar apareceu na frente dele uma noiva. Ele parou e o cabelinho dele se arrepiou. Corajoso, continuou caminhando. A noiva não olhou para ele, saiu de um poço onde tinha uma água muito clara e límpida, e caminhou em direção à lagoa — relata seu Aderi.
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Segundo o aposentado, foi após essa suposta aparição que o pai contou para a família sobre o crime ocorrido em Porto Alegre e do desfecho na Lagoa dos Barros. De acordo com sua narrativa, o corpo da jovem morta teria sido encontrado pela polícia às margens da lagoa, em um terreno onde vivia uma vizinha chamada Bila. Nesse trecho, as mulheres lavavam roupas, pois não havia água encanada.
— Naquele tempo, a lagoa batia na RS-030, não existia ainda a freeway. Elas tinham o costume de chegar de manhã e iam para a Lagoa dos Barros para lavar roupa. No lugar tinha uma prainha de areia espraiada e nas costas delas ficava uma figueira grande. Um dia, dona Bila veio sozinha lavar roupa — detalha.
A história segue com ares de suspense e com os olhos arregalados do narrador.
— Ela olhou para dentro da lagoa e viu uma roupa boiando na água. Ficou com medo e chamou o marido, que entrou na água. Era o vestido da Maria Luiza, que teria sido amarrado nas pernas dela. Ele suspendeu o vestido e a Maria Luiza estava junto. No pescoço dela havia tijolos.
O corpo da vítima do crime de 1940 foi desovado nos arredores de onde fica a antiga usina Açúcar Gaúcho S/A (Agasa). O próprio Aderi trabalhou ali no passado e compartilha que as aparições da noiva acontecem perto deste lugar, que se destaca por exibir ainda hoje uma grande chaminé.
— A região mais específica (das aparições) era atrás da Agasa perto da chaminé. Tem relato de pessoas que até se acidentaram ali, porque quando o motorista menos espera a noiva está em cima do caminhão — diz.
Esse é um ponto importante dessa lenda. A mulher vestida de noiva apareceria especialmente para os motoristas de caminhão.
— Acredito que a noiva apareça mesmo, apesar de nunca ter visto — comenta Aderi com os olhos ainda arregalados.
Há 30 anos, o encontro com a noiva
O aposentado Antonio da Silva Neto, 76, sempre viveu em Osório. E guarda na memória a ocasião em que testemunhou a aparição da noiva. Quando conta o que viu, as mãos tremem e a voz sai nervosa dos labirintos do passado. É como se o corpo não quisesse trazer o trauma à tona. Mas ele fala em tom ansioso:
— Eu vinha no dia 27 de março de 1995 de Porto Alegre a Osório, a uns 90 quilômetros por hora. E ela (noiva) saiu da lagoa assim pairando, veio, veio... Tive que frear um pouco o carro para não bater. Fui para casa bem assustado — recorda.
Seu Antonio estava sozinho e voltava da Capital, onde havia jogado bingo durante o dia. Teve sorte e ganhou o equivalente a R$ 5 mil. No trajeto, lembra de ter visto sobre a lagoa uma imensa lua. A aparição ocorreu às 2h da madrugada.
— Dali da Agasa até Osório, não consegui andar mais do que a 20 quilômetros por hora. Valente, né? Não tinha força para frear o carro. Cheguei em casa, bati na porta de casa e pedi dois copos de água para minha mulher — relembra, dizendo que não teve coragem para buscar o dinheiro no porta-luvas do veículo, tarefa que coube a esposa.
— Eu acredito na história, porque vi — assegura.
Lenda povoa o imaginário de quatro amigas em Passinhos
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Aos 78 anos, dona Isaura Peixoto da Silva é conhecida por ser uma profunda conhecedora de ervas e temperos em Passinhos, em Osório. Nos fundos de seu quintal, há plantas medicinais, árvores e galinhas. Cabeças e troncos de manequins de antigas vitrines estão espalhados entre o verde e dão um tom curioso ao espaço. Uma Border Collie preta, com nove filhotes de apenas 20 dias de vida para amamentar, pode ser vista por perto, vigilante e desconfiada da presença de estranhos no local. No terreno ao lado, uma figueira centenária espraia sua copa até formar um convidativo guarda-chuva de sombra.
— Sempre ouvia dos meus pais que a tinham matado (a vítima de feminicídio). E que depois ela aparecia vestida de branco, pegava carona com os caminhoneiros e sumia do nada como fumaça — conta, com o olhar grave de quem sabe que o assunto assim exige.
Além da história da noiva, a dona de casa escutou sobre outras lendas:
— Quando baixa bastante a água da lagoa, aparece uma igreja, porque era uma cidade que afundou. Nada concreto, uns dizem uma coisa, outros dizem outra.
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O marido Nerocy Pereira da Silva, 82, costumava frequentar a Lagoa dos Barros. Ele fala o que sabe:
— O que ouvi falar é que ela aparecia vestida de noiva na beira da lagoa e andava para o lado e, daqui a pouco, terminava. Graças a Deus, andei muito na beira da lagoa, mas nunca vi.
A aposentada Maria de Lurdes Lopes da Silva, 77, também conhece a lenda envolvendo aparições de uma noiva.
— O meu pai viu muito (a noiva) e contava para nós. Primeiramente, ela vem numa bola de fogo e parava na frente do cavalo (onde o pai estava) e não arredava. Ele andou muito na beira da lagoa trabalhando nas lavouras. Ele a via vestida de noiva atravessando de Morro Grande rumo a Osório — afirma.
A aposentada Naira Eliziane Gattino, 66, vive há poucos anos em Passinhos, mas já teve contato com os mistérios da região.
— O que sempre ouvi falar é que na Lagoa dos Barros existia uma cidade subterrânea e que uma noiva aparecia para os caminhoneiros.
A amiga Maria Teresinha Ferreira Marques Boeira, 67, acrescenta:
— A minha mãe me falava que a lagoa era uma cidade que tinha afundado. Deu uma tempestade muito forte e a lagoa desapareceu. E também sobre a noiva, que os caminhoneiros viam ela dançando sobre as águas e davam carona. Mas ela virava fumaça e desaparecia.
Legado oral
A historiadora e professora Isabel dos Santos, 58, escuta sobre a lenda da Noiva da Lagoa dos Barros desde sua infância. A docente reúne as histórias com a ideia de publicar um livro no futuro. O objetivo é trabalhar as lendas em sala de aula com os alunos e perpetuar esse legado oral.
— Essa é uma lenda tradicional da região. Ela começa a ser contada uns cinco anos depois da morte da Maria Luiza, que foi assassinada em Porto Alegre e o noivo desovou o corpo às margens da Lagoa dos Barros pelos lados da RS-030, perto de Santo Antônio da Patrulha.
Conforme a historiadora, os moradores começaram a narrar as aparições que testemunhavam nas imediações da Agasa.
— No próprio prédio da Agasa, os funcionários contavam histórias das aparições dela. E não tem um caminhoneiro da região que não tenha visto a noiva — cita.
Isabel conta que em certa ocasião, um caminhoneiro deu entrevista para ela dizendo que a noiva teria aparecido no banco do carona do veículo, e que teria desaparecido após ele gritar de pavor.
— Ultimamente, a gente não sabe mais de muitas aparições. Mas todo mundo que passa na estrada de madrugada já fica apreensivo — observa.
Características da Lagoa dos Barros
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O professor Antonio Pedro Viero, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), compartilha as principais características da Lagoa dos Barros, que teria se formado há 200 mil anos.
O docente participou de dois estudos detalhados sobre o local, realizados em 2014 e 2021. Também já navegou por suas águas em diferentes oportunidades.
Com 9,3 mil hectares de área, a profundidade média é de quatro metros, segundo o professor. Mas ela pode chegar até 5,6m quando está bem cheia, como na enchente do ano passado no Estado.
A Lagoa dos Barros se origina da sedimentação da planície costeira do RS. A água é doce e decorre da chuva. Cerca de 30% vem da parte subterrânea (Aquífero Guarani) e outra da área vulcânica. Não há salinidade.
— O sedimento do fundo é composto 95% por lodo. Por ter muita matéria orgânica é um lodo preto, por isso a água é sempre extremamente turva e escura — diz o professor.
O volume médio de água da lagoa beira os 380 bilhões de litros, ou 380 milhões de metros cúbicos. Outro detalhe importante é que ela não tem exutório natural (local em que as águas encontram o oceano ou deságuam em uma bacia hidrográfica maior), com exceção das enchentes. Dessa forma, o que tira água da lagoa é o bombeamento para a irrigação de arroz, podendo passar de 100 bilhões de litros numa safra.
O professor Luiz Roberto Malabarba, ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da UFRGS, explica que a Lagoa dos Barros integra a Bacia Hidrográfica da Laguna dos Patos, diferentemente das lagoas costeiras interligadas entre a Lagoa Itapeva, ao norte, e as Lagoas Rondinha e Cerquinha, ao sul, que deságuam no Rio Tramandaí:
— A ictiofauna (fauna de peixes) encontrada na Lagoa dos Barros comprova a relação histórica com a Laguna dos Patos, pois apresenta espécies que ocorrem no Lago Guaíba e Laguna dos Patos e que não acontecem na Bacia do Rio Tramandaí. Por exemplo, na Lagoa dos Barros se encontra o mesmo pintado (Pimelodus pintado) que tem no Guaíba — ilustra.
Riscos da lagoa
O comandante Remisio Schnell Wilms, das 3ª e 4ª Companhias de Guarda-Vidas do Litoral Norte, já participou de operações de resgate na Lagoa dos Barros. O militar alerta sobre um grande perigo para quem se aventurar a entrar na água — as bombas de sucção que puxam água para a lavoura.
— Bem na margem já tem esses locais de risco, onde ficam os canais dessa sucção. Para banho, são bem perigosos e oferecem riscos — diz.
Na parte da lagoa voltada para a freeway quase não se veem pessoas ou atividades sendo desenvolvidas na água. Porém, no lado de Osório, é comum a prática de esportes aquáticos, como o kitesurf.
— Temos uma guarita de salva-vidas ativa no lado de Santo Antônio da Patrulha. Na parte de Osório não temos o serviço ativo — pontua o comandante.
Wilms comenta que existe navegação na lagoa, mas em quantidade reduzida, assim como poucos pescadores.
— Não sei se pela questão do morro ser muito próximo da lagoa, as marolas vêm de todos os sentidos quando se entra com uma embarcação para fazer buscas na água. Dificulta muito a travessia — conclui.