Um carinho: é assim que 14 mulheres vítimas das enchentes no RS definem o cuidado que receberam na tarde fria e ensolarada desta quarta-feira (15) em dois salões de beleza de Tramandaí.
— A gente está tão sensível. Sem casa, sem trabalho. Sem perspectiva do que vai acontecer, a água cada dia subindo mais, mais imprevisível. Achei um carinho. Se preocupar com cabelo, com unha, nem a gente está conseguindo, e alguém se preocupou. É um quentinho no coração da gente — ressalta Teresinha Franz, 50 anos, cozinheira e proprietária de um restaurante em Canoas.
A ideia surgiu coletivamente, a partir da percepção da necessidade de fornecer tempo de qualidade às pessoas que buscavam ajuda no CTG Gaúcho Litorâneo, transformado em abrigo e local de doações por uma iniciativa privada. Assim, profissionais da região que são amigas se uniram à causa para retocar raízes, fazer sobrancelhas e pintar as unhas das mulheres vítimas da catástrofe ambiental que recebem auxílio no local.
— A gente quer proporcionar para elas uma tarde de beleza, para que se sintam mais bonitas — afirmou a cabeleireira Bruna Lopes, 27 anos, uma das 14 profissionais envolvidas na ação.
Teresinha aproveitou a oportunidade para pintar os cabelos e fazer as unhas. A cozinheira estava ao lado de familiares, que estão abrigadas em sua casa de veraneio em Nova Tramandaí, após todas terem as residências no bairro Rio Branco, em Canoas, atingidas pelas enchentes. O primeiro piso da casa de Teresinha ficou submerso, e a família também perdeu os carros. O resgate foi feito de barco, com a água já pela cintura. A casa de dois quartos no Litoral Norte agora abriga nove pessoas, três cachorros e um gato.
Sua irmã, Sandra Franz, 44, confeiteira, relata que ainda está abalada com tudo o que aconteceu. Sua família perdeu a única casa e o carro. A padaria na qual trabalha e a oficina em que o marido é empregado ficaram embaixo d’água. Eles aguardaram resgate durante 18 horas no segundo piso da casa do vizinho, sem comida e molhados.
— Chegou uma hora que eu só esperava, e via a água subindo, subindo. Fecho os olhos e escuto vozes, gente pedindo socorro, cachorro uivando. Foi muito rápido — lamenta.
Mesmo sem ânimo nem cabeça para pensar, a confeiteira foi ao salão para receber uma hidratação nos cabelos e pintar as unhas.
— É um acalento — reconhece.
O grupo familiar elogiou o acolhimento e a corrente do bem formada em Tramandaí, avaliando que a situação de quem ficou em abrigos na Região Metropolitana, por exemplo, está mais complicada. Em uma loja de aviamentos, as mulheres não precisaram pagar. O povo é acolhedor, amoroso e empático, conforme a família – que sempre gostou muito da cidade litorânea e, agora, gosta ainda mais. As mulheres, por enquanto, não pensam em retornar para Canoas.
“É sempre aquele trauma”
A operadora de caixa Gabriela Oliveira da Silva, 31, da Ilha da Pintada, na Capital, também recebeu cuidados durante a ação no salão. Ela está abrigada desde sexta-feira (10) com o marido e o filho no CTG Gaúcho Litorâneo. Nesta quarta, antes do dia de beleza, ela recebeu a reportagem no espaço onde os três estão dormindo.
Gabriela relata que a família foi resgatada de barco com a água no pescoço – seu marido erguia o menino de dois anos em uma tentativa de chamar a atenção dos resgatistas. A situação foi “muito difícil e muito triste”, conta:
— A água tomou conta de tudo. A gente perdeu tudo, perdeu roupa, perdeu os móveis, ficamos sem nada. Aí a gente veio para cá. E aqui a gente chegou só com a roupa do corpo e os documentos.
A família decidiu ir à cidade onde o marido costumava vender picolés e tentar encontrar um lugar para ficar. Agora, abrigados no CTG, ele está em busca de um emprego para que os três possam alugar uma casa. Gabriela ressalta, porém, que estão sendo bem atendidos tanto em termos de alimentação quanto de alojamento, além de terem recebido diversas peças de roupa e cobertores – que estão protegendo-os do frio, assegura. A família não quer mais voltar à Ilha da Pintada.
— É sempre a mesma coisa: chove, alaga tudo, chove, alaga tudo. Daí a gente consegue as coisas, depois perde tudo de novo. As coisas materiais nem é tanto, mas é sempre aquele trauma, começa a chover, a gente já começa a ficar nervoso. Eu já tenho problema de saúde, não posso ficar nervosa, eu já passo mal, tomo remédio controlado, e isso tudo afeta o psicológico da gente — lastima.
Movimento civil auxilia vítimas
O CTG Gaúcho Litorâneo abriga, atualmente, 16 vítimas das enchentes, em iniciativa vinculada a um movimento civil. No local, também é realizado o acolhimento a famílias abrigadas em casas próprias ou emprestadas por familiares, amigos ou até mesmo voluntários na praia. Para tal, o CTG recebe e repassa doações da sociedade, de instituições e empresas, que também são enviadas a cidades atingidas pelas enchentes. A prefeitura de Tramandaí também acompanha e oferece auxílio.
O local chegou a receber 32 desabrigados, que já foram realocados e recebem mantimentos. No momento, o movimento acompanha e fornece doações a 80 pessoas que estão alojadas em Nova Tramandaí. Muitas desejam ficar para residir no município, conforme os responsáveis pelo abrigo, que ajudam a encaminhar currículos. O local também conta com o auxílio de vizinhos para lavar roupas de cama e do Jeep Clube para o almoço. Há, ainda, 10 profissionais de saúde voluntários, como médicos, enfermeiros e uma rede de psicólogos.
— É uma corrente entre pessoas que só queriam ajudar mesmo — afirma Renata Fraga, 35, que trabalha com e-commerce e está coordenando as ações no local.
Proprietária de uma fábrica de açaí no bairro Rio Branco, em Canoas, Ariana Lamb, 45 anos, chegou na manhã desta quarta-feira para buscar doações no CTG e decidiu ficar para ajudar a organizar. Sua casa foi completamente alagada, e ela e o marido, que são autônomos, estão sem trabalho. Em função das filas em mercados e da falta de comida e de água, sua família decidiu vir para a praia. Eles estão alojados na casa da amiga de sua mãe.
— Aqui (no CTG) distrai a cabeça, aqui a gente ajuda. Eu saí de manhã, eu não tenho hora para voltar. Agora quando eu voltar, eu volto com a comida, com roupa. A gente fica aqui, se distraindo e ajudando — afirma.
Ariana elogia o local por deixar os desabrigados e desalojados escolherem as peças que gostam e por fornecer alimentos em boa quantidade. A família espera a água baixar para voltar à residência em Canoas – a casa de madeira de seu pai, no entanto, parece ter sido levada pela água.
— Não tem para onde ir. Tem condições da gente limpar a nossa casa. Perde tudo, mas a gente corre atrás depois. Mas o que a gente puder arrecadar aqui para se manter no inverno… — relata.
Prefeitura estima que mais de 50 mil pessoas se deslocaram até a cidade
Segundo estimativa da prefeitura de Tramandaí, cerca de 50 mil pessoas se deslocaram até a cidade em função da calamidade – tanto vítimas das enchentes quanto pessoas que tiveram a infraestrutura impactada pelo evento climático. A maior parte, contudo, está alojada em casas próprias, de familiares ou amigos. Muitos ainda continuam se dirigindo ao litoral.
A prefeitura montou um centro de acolhimento a vítimas das enchentes, que também recebe e distribui doações. Até esta quarta-feira, mais de 8,7 mil pessoas já foram atendidas no local e receberam auxílio como cestas básicas, vestimentas, colchões, ração para pets e brinquedos.