Conversar sobre dinheiro pode ser um tabu, mesmo na intimidade das famílias. Mas se falar sobre isso é delicado, pior é não falar. Por meio dessa conversa, os pais têm a possibilidade de contribuir para que seus filhos desenvolvam uma relação saudável com as finanças e se tornem adultos seguros. Ajudar nesse diálogo entre gerações é uma das tarefas da consultora de educação financeira Cássia D'Aquino, autora de Educar para o Consumo: Como Lidar com os Desejos de Crianças e Adolescentes (em parceria com Maria Tereza Maldonado, editora Papirus/7 Mares), Dinheiro Compra Tudo? Educação Financeira para Crianças e Ganhei um Dinheirinho: O que Posso Fazer com Ele? (ambos pela Moderna). Psicanalista e educadora com especialização em crianças, Cássia coordena programas de educação financeira em diferentes escolas do país. Nesta entrevista, concedida por telefone, oferece orientações práticas e explica como a educação financeira deve estar integrada, dentro de casa, ao projeto mais amplo de educação conduzido pelos pais.
Qual é a idade mais apropriada para os pais começarem a educação financeira dos filhos?
A partir do momento em que a criança estreia no mundo, ela já se torna partícipe do processo de educação que recebe dos pais. Lá pelos quatro meses de vida, começa a ser capaz de tolerar microesperas. Se ela chora, querendo mamar, e a mãe diz "você já vai mamar", ainda que a criança não compreenda nenhuma palavra, ela vai se tornando confiante na própria capacidade de esperar apenas pelo tom de voz calmante da mãe. Esse processo tem dois lados: o da criança, que aprende a esperar, e o do adulto, que suporta que a criança espere. Esse duplo processo é o que fará com que a criança, ao longo do tempo, vá se tornando cada vez mais confiante na própria capacidade de suportar esperas e, portanto, de suportar frustrações e ser capaz de fazer escolhas e arcar com as consequências. Mas a resposta mais direta a essa pergunta, que costuma ser a que os pais buscam, é a seguinte: quem tem a solução para esse enigma (a partir de que idade se deve abordar a educação financeira) é a criança. No momento em que ela pede aos pais que comprem alguma coisa, ela entrega aos pais o passaporte do início da educação financeira. Isso porque nesse momento ela demonstra que nesses dois anos e meio ou dois anos e oito meses, que é quando costuma acontecer esse pedido, ela já prestou atenção em uma porção de coisas. Já entendeu que dinheiro existe, que os pais têm e que dá acesso a coisas coloridas, divertidas e gostosas. A educação financeira é uma rede delicada, tecida durante cerca de 20 anos. Portanto, sem ansiedade, sobressaltos ou afobações.
Um dos principais desafios dos pais nesse momento é justamente saber quando dizer sim e quando dizer não. Há recomendações para isso?
É muito difícil dizer não exatamente porque as crianças são uma espécie de presente que o destino nos dá. O que ajuda os pais a sustentarem o não e a perceberem que, mesmo que você tenha o dinheiro, é importante dizer não para a criança em determinadas circunstâncias, é a convicção do adulto que você quer formar. Para construir essa pessoa, nos damos conta de que ela precisa suportar a frustração. Educar basicamente é frustrar. Não é dizer o não pelo não, mas o não que pretende que a criança compreenda que existe um limite. Isso dá muita segurança à criança. Uma criança que ouve o não ponderado e na hora certa é uma criança muito mais segura, porque sabe que está mais protegida.
Qual deve ser o objetivo dos pais ao implementar semanada ou mesada? E como fazer com que essa experiência seja bem-sucedida?
Semanada se recomenda até os 11 anos, porque até esse momento a criança ainda não tem o pensamento abstrato perfeitamente desenvolvido. E o tempo é uma abstração. Se você diz a uma criança de seis anos "daqui a um mês", ela compreende a frase, mas não é capaz, como nós, de fazer essa projeção. Por isso, se recomenda semanada. Se ela for à falência na quarta-feira, não tem que esperar o mês inteiro para recuperar seu orçamento. A partir dos 12 anos, aí sim é mesada. Tanto semanada quanto mesada são apenas formas de ensinar os filhos a lidar com dinheiro. Existem muitas outras. Não é fácil dar semanada ou mesada, pois exige compromissos que nem sempre os pais estão dispostos a assumir, como lembrar de sacar o dinheiro em notas miúdas e obedecer a uma cadência de tempo para que a criança se acostume a receber sempre no mesmo dia. Quando bem dada e bem dosada, é um excelente instrumento de educação financeira. Mas é preciso que seja acompanhada de uma explicação: "Você vai receber uma grana toda semana para que vá aprendendo a se organizar em relação ao dinheiro. Para que, quando você crescer, já saiba fazer isso". Um enunciado simples como esse é o suficiente para traduzir para a criança que os pais esperam que ela aprenda algo com esse processo.
Os pais devem incentivar as crianças a poupar uma parte da mesada?
Sim, isso é fundamental. A mesada existe para ensinar a gastar: ser capaz de cumprir um orçamento, estabelecer objetivos. Mas também para que a criança seja capaz de projetar esse desejo no futuro. O que importa é que ela seja capaz de compreender que consegue esperar. A espera no tempo não é uma coisa natural. Por isso, ensinar a criança a dosar seu desejo no tempo é uma arte preciosa. Mas não adianta os pais quererem que a criança, aos seis anos, comece a poupar para comprar um carro quando tiver 18 anos. Já vi tantas vezes isso, mas é absurdo. Primeiro, ensine a poupar para o final de semana ou para daqui a duas semanas. À medida que elas vão crescendo, você vai estendendo esse prazo. Não pode ser nada muito caro que exija dela um ano de poupança. O ideal é que seja um objetivo que ela possa alcançar no curto prazo para que se sinta recompensada por isso: "Olha só, eu decidi que ia comprar o álbum de figurinhas e realmente me organizei e consegui!". É essa sensação boa que faz com que a criança repita o processo e vá se sentindo cada vez mais interessada em se tornar poupadora. A mentalidade poupadora é essa capacidade de postergar um desejo de agora em função de um futuro benefício.
Uma criança que ouve o não ponderado e na hora certa é uma criança muito mais segura.
CÁSSIA D'AQUINO
Você costuma sugerir um cálculo para os pais definirem o valor da semanada ou da mesada. Como funciona?
O cálculo de R$ 2 por idade por semana funciona relativamente bem até os 11 anos. Por exemplo, uma criança de cinco anos receberia R$ 10 por semana (o site de Cássia tem uma calculadora para orientar os pais sobre semanada e mesada: acesse aqui). Mas vai depender da região do país em que a família mora. Se é um centro urbano, os preços normalmente são maiores. Se é uma cidadezinha menor, muitas vezes os preços são menores. Essa regrinha não é o 11º mandamento, mas sugiro que os pais não se afastem demais dela, sob pena de darem tão pouco dinheiro que a criança não consiga se organizar ou de darem tanto dinheiro que ela não sinta a necessidade de se organizar. Uma pesquisa com os pais dos colegas muitas vezes ajuda a equacionar esse problema, para saber mais ou menos como anda a média do mercado de semanadas e mesadas.
Alguns pais associam semanada ou mesada a alguma condição, como passar em uma prova. Isso é recomendado?
Não gosto de associar ao desempenho escolar nem à realização de tarefas em casa. Primeiro, vamos falar sobre desempenho escolar. Uma criança bem assistida do ponto de vista emocional, cognitivo, pedagógico e alimentar tem todas as condições para ir bem na escola. Se ela não vai, alguma coisa está acontecendo, e é preciso que se investigue a causa, e não que se redobre a tensão sobre a criança. Quando os pais dizem "se você tirar determinada nota, vamos te dar dinheiro", estão dobrando essa tensão. Além disso, quando os pais fazem isso, estão inadvertidamente transmitindo à criança um recado muito perigoso: "Não importa o que você faça, o que me importa é o resultado". Não nos damos conta, mas essa é uma maneira de estimular coisas como corrupção, inclusive. Não estou dizendo que o resultado não é importante. Mas se privilegiamos o processo de aprendizado da criança e perguntamos todo dia "o que você aprendeu hoje na escola?", você vai observando se a criança está atenta ou desatenta. Se vamos lendo esses sinais, o resultado deixa de ser tão importante e vira uma consequência.
A mentalidade poupadora é essa capacidade de postergar um desejo de agora em função de um futuro benefício.
CÁSSIA D'AQUINO
E quanto a associar a semanada à realização de tarefas em casa?
Precisamos compreender que os filhos são parte da comunidade familiar. Portanto, há determinadas atividades que devem cumprir, mesmo que sejam famílias que tenham funcionários à disposição da criança. Arrumar a cama, por exemplo. Essas atividades sinalizam autonomia. Se começamos a remunerar a criança por coisas banais, o que estamos dizendo é: "Como não consigo exercer minha autoridade de adulto, preciso lançar mão de um artifício, que é o dinheiro, para convencer você a me obedecer". É um recado horroroso que se passa à criança.
Existe uma idade mínima recomendável para apresentar produtos bancários e investimentos aos filhos?
Por volta dos 10 ou 11 anos, quando o pensamento abstrato vai ganhando corpo, uma visita ao banco é bem-vinda. Para abrir uma conta-poupança, por exemplo. Alguém vai dizer: "Poupança não rende nada". É óbvio, mas o que interessa nesse momento é o fato de ser um investimento de facílima compreensão para a criança. Eu não sei há quanto tempo não vou ao banco, mas para quem tem filhos pequenos ou ainda em fase de crescimento, isso é importante. Para que eles entendam que o gerente está ali defendendo os interesses do banco, que temos de prestar atenção aos nossos interesses. Nesse momento, já é possível, com as sobras da mesada, que a criança possa ir começando a depositar nessa conta, de maneira que vá aprendendo a alongar no tempo aqueles objetivos. Mais tarde, por volta dos 14 ou 15 anos, é possível apresentar novas formas de investimento, sempre muito seguras, porque o dinheirinho delas é pouco. Na alta adolescência, por volta dos 18 ou 19 anos, aí sim é possível começar a falar de investimentos mais sofisticados, falar sobre riscos.
As crianças parecem ser mais sensíveis do que os adultos aos desejos consumistas. Muitas vezes, dependem de ter um tênis ou outro produto da moda para serem aceitas em seu grupo. Como os pais podem ajudar os filhos a lidar com essa pressão?
Essa pressão não está apenas sobre as crianças: aflige a todos nós do mundo adulto também. Você quer a TV, o vinho, a viagem do seu amigo. A diferença é que a criança anuncia isso com mais clareza. Por volta dos oito ou nove anos, as crianças começam a se tornar mais interessadas na ideia de grupo. É nesse momento que elas ficam muito sensíveis ao que os outros têm. Mas precisamos lembrar que a principal influência na vida de qualquer criança será sempre a dos pais. Muitas vezes, os pais se preocupam com o consumismo da criança, mas não se dão conta do quanto eles próprios são assim. Em segundo lugar, não acho que devemos negar à criança tudo que ela quer em relação a essa composição com o grupo. Se não dá para dar a mochila do personagem tal porque não vai caber no orçamento de casa, quem sabe ofereça uma borracha do personagem, ou um lápis. Algo que ainda permita a ela se sentir integrada ao grupo. Porque aí é menos uma questão de consumismo e mais uma questão de ela processar o crescimento. O que não é admissível é a família se prejudicar para atender aos desejos da criança. Já vi famílias se endividarem para fazer festa em determinado bufê, porque todo mundo da escola faz. Mas quem é mesmo que queria essa festa: a criança ou os pais?
Já vi famílias se endividarem para fazer festa em determinado bufê, porque todo mundo da escola faz. Mas quem é mesmo que queria essa festa: a criança ou os pais?
CÁSSIA D'AQUINO
Alguns pais optam por fazer um investimento, como uma previdência, para as crianças utilizarem quando tiverem 18 anos. Por exemplo, para comprar um carro ou ajudar a pagar a faculdade. Como você avalia essa medida?
É importante lembrar que vivemos em um país com diferenças de renda abissais. Mas, para as famílias que conseguem poupar alguma coisa, no momento em que têm filhos, é realmente o ideal ter uma reserva de dinheiro para eles. Prefiro que não se determine um objetivo fechado para esse dinheiro, porque pode acontecer da criança se tornar um jovem que não tem interesse naquele destino que você desenhou para ele. No momento certo, quando se sentir que esse jovem tem real preparo emocional para lidar com esse valor, aí então se passa o dinheiro. Agora, tudo isso presumindo que os pais tenham sido capazes de construir antes uma poupança para seu próprio envelhecimento. Porque a ideia de poupar para a juventude dos filhos e esquecer que os pais vão envelhecer é um contrassenso. E acaba criando um problema para os filhos, porque alguém vai ter que cuidar dessa velhice. É como ensinam nos aviões: primeiro, você coloca a máscara em si e depois no seu filho. Ou seja: você poupa primeiro para seu próprio envelhecimento e depois é que vai poupar para os filhos.
Falando sobre filhos jovens, muitas vezes ocorrem divergências geracionais com os pais. Por exemplo, quando os pais dão conselhos, inclusive sobre finanças, que faziam sentido em uma época mas talvez não mais agora. Por outro lado, a experiência dos pais é muito valiosa, e os filhos podem aprender com ela. Como lidar com esses conflitos?
Esse é um tema em debate desde que o mundo é mundo (risos). Os pais vão ter sempre uma experiência baseada no que viveram, e a juventude vai ter outra percepção. Uma percepção que é inclusive banhada por uma noção de risco muito menos firmada. Por isso, quando você é adulto e lembra das maluquices que fez quando jovem, pensa: "Meu Deus, onde eu estava com a cabeça?". Espera-se que se estabeleça algum diálogo entre a esperada sobriedade dos pais, baseada na experiência, e esse ímpeto voluntarioso dos filhos. Mas há determinadas recomendações gerais que nãos se alteram. Mesmo que haja novidades como o bitcoin, que são mais de uma geração do que da geração anterior, as recomendações gerais valem. Falo em termos de risco, de cuidados. Quanto risco você está disposto a correr? Os produtos mudam, mas as orientações gerais em relação ao dinheiro não se alteram tanto.
O Brasil é um país muito endividado. Quais são as questões que chegam para você nesse sentido em relação às famílias?
O país está sem crescer há muito tempo. O que isso vai representar no futuro me preocupa imensamente. Imagine o impacto que vai ter essa geração que é filha de pais inadimplentes e cresce em um lar desesperançado em relação ao dinheiro. Isso aparece para mim o tempo inteiro: pais angustiados, que não desejam que os filhos venham a passar por essa situação de endividamento. Educação financeira é importante, mas não é milagrosa. Para que funcione, é preciso que tenhamos uma economia planejada, que não se tenha inflação, que exista emprego. É preciso tudo isso para que as pessoas possam se planejar em relação ao dinheiro. Tomara que a coisa se desenlace de uma vez por todas e que consigamos ver a economia voltar a crescer. Já tivemos uma geração que fez faculdade e não conseguiu se empregar depois, que ficou conhecida como a geração nem-nem (nem estuda nem trabalha). Agora, temos uma geração que vai crescendo com pais inadimplentes e desesperançados em relação ao dinheiro. Isso não é um assunto de educação financeira, é um assunto social. Só poupamos se acreditamos que o futuro será bem-vindo e que, portanto, vale a pena esperar por ele.
Em entrevistas, você já observou que, quando se fala de educação financeira, não se está falando do dinheiro pelo dinheiro. Está se falando, no fundo, de integrar o dinheiro a um projeto amplo de educação dos filhos. Correto?
É isso mesmo. O dinheiro é quase uma desculpa para falarmos de uma porção de outras coisas: escolhas, riscos, o modo como dependemos uns dos outros, o que é ou não importante na vida. Quais são os meus limites? O que é suficiente para mim? Educação financeira não é uma educação financista. Não é tornar as crianças ou adolescentes especialistas em finanças. O que interessa é que você vá criando alicerces para que na vida adulta aquilo faça sentido. Ir ensinando a decodificar o uso do dinheiro de uma maneira crítica, em que o consumo seja bem-vindo, porque consumir é ótimo, mas ao mesmo tempo transformando isso em uma reflexão. Ir prestando atenção na criança todo dia, sem pressa, sem ansiedade, e com muita serenidade.