O escritor paulistano Ricardo Lísias, 47 anos, desenvolveu um quadro grave de covid-19 no pior momento da pandemia no Brasil. Adoeceu em março de 2021, quando os hospitais entraram em colapso, a vacinação avançava devagar e ele ainda não tinha recebido nenhuma dose de imunizante. O livro Uma Dor Perfeita começou a ser redigido ainda no hospital. Baseia-se em lembranças, conversas de WhatsApp e com a equipe assistencial, anotações – o autor pediu papel e caneta quando passou a se sentir melhor. Os momentos mais dramáticos estão explícitos no texto, marcado por um recurso agoniante: quando o relato repassa momentos com as crises de tosse mais fortes, as frases são interrompidas, acabando sem ponto-final. O título do livro remete à sensação dilacerante que Lísias não consegue definir plenamente: parecia que suas pernas eram mastigadas pela ação do coronavírus. Nesta entrevista, concedida por telefone, ele recorda a experiência e fala sobre a criação da obra após ter superado a doença.
A ideia do livro nasceu muito cedo, ainda no hospital, onde você pediu papel e caneta. Fale um pouco sobre o início desse processo.
Eu estava com sintomas leves, mas piorei muitíssimo uma noite e naquela manhã. Medi a saturação, e o médico da minha esposa (que estava em teleconsulta) falou que eu deveria ir para o hospital imediatamente. “Tudo bem, vou tomar um banho”, eu disse. “Você tem que ir agora, de imediato”, ele falou. Aí só peguei o telefone. Nos primeiros dias, passei realmente muitíssimo mal, mas depois conversava com algumas pessoas, entre elas o meu editor, que conheço há anos. Ele disse para eu fazer um livro. Fiquei umas três semanas internado. Tive muito problema de mobilidade. O que atacou, além do pulmão, foi uma questão muscular. Fiquei praticamente paralisado. Conseguia mexer da cintura para cima, mas não conseguia sair da cama. Quando me senti um pouco melhor, comecei o livro ali mesmo. Fui melhorando. Depois fiquei num quarto. Aí eu já conseguia sentar e comecei a fazer. Acabei lendo muito sobre o assunto, sobretudo a partir do hospital. Antes lia para me informar, depois li muito.
O livro começa confuso, retrato do seu estado. Você não tem memória auditiva dos primeiros dias de hospitalização. Deu-se liberdade para criar ou o relato é totalmente fiel a anotações, conversas pelo celular e lembranças possíveis?
Essa é uma das perguntas decisivas. O livro é inteiramente resultado das lembranças, das mensagens de WhatsApp que ficaram salvas daqueles dias, mas é uma questão da literatura contemporânea. Não é um livro de ficção, muito embora esteja registrado como romance. Essas categorias não estão mais dando conta de tudo. Chamo de livro, é um livro. Naqueles primeiros dias, tinha uma dor muito forte. Depois vi que enviei mensagens, há um ou dois registros de conversas com a minha mulher. Eu ouvia, mais ou menos, os médicos. Eles ficavam discutindo se eu seria entubado ou não. Depois perguntei, para saber se eu não estava imaginando, delirando, porque tive uma febre muito elevada. A médica me falou: “A gente discutiu, realmente, mas decidiu aguardar 24 horas, em conjunto com os fisioterapeutas”. Eu estava tendo uma piora muito grande, depois parei de piorar, só que não melhorava, então eles resolveram apostar um pouco. Acabei não sendo entubado. Lembro de ter ouvido essa conversa, o resto não lembro exatamente. Como eu tinha os contatos do WhatsApp e alguma memória, fiz essa enunciação. Mas não posso chamar isso de ficção. Não sei o nome (risos). Vou deixar esse problema para os críticos.
Muitos pacientes que enfrentaram casos graves de covid-19 optaram por não saber detalhes desse período. Como foi revisitar tudo para produzir o livro?
Não foi ruim. Foi tudo feito muito rápido. Mas, por outro lado, essa revisitação já foi um retorno estético. Tudo foi pensado, desde a primeira vez, como um livro. Nessa revisita, havia um planejamento, que foi exatamente o que me ajudou muito. Agora, devo dizer que sentia muita raiva da situação enquanto estava fazendo o livro. Teve gente que morreu ao meu lado. Era um hospital da classe alta, e as pessoas morriam. O hospital estava superlotado. Fui internado no início da tarde. À noite, já não tinha mais vaga. Foi justamente naquele momento em que morriam 4 mil pessoas por dia, o pior momento. E eram idosos que poderiam ter tido a vacina. Isso é muito odioso.
O título remete à dor que você descreve como “a dor exata para os sorteados pela covid”. Você sentia as pernas sendo carcomidas pelo coronavírus, “metade do meu corpo parecia prestes a explodir”, havia o temor constante de trombose, as descrições são aflitivas. Apesar de você dizer que “nenhum relato dará conta de tanta exatidão”, preciso pedir para compartilhar aqui com os leitores: como é “a dor perfeita”?
Esse é um dos grandes problemas. Não creio que a literatura, a arte, como relato, consiga atingir aquilo que vivi. Os médicos faziam todos os esforços, remédios, havia massagem, que não dava certo. Uma das mensagens que mandei para a minha mulher, naquele momento, era em relação à dor. A médica disse que era como se meus músculos estivessem sendo mastigados. Era uma coisa muito violenta. Na minha opinião, a dor perfeita é a dor que não é possível descrever. A linguagem, a literatura se aproveitam muito da imperfeição, da possibilidade que temos de ir apreendendo as coisas por suas imperfeições, seus defeitos, suas fraquezas. Ali, o que eu não via era fraqueza por parte da dor. Algo tão completamente forte que era muito fulminante. O que aconteceu é que ela passou. Depois de cinco dias, passou de um jeito tão estranho como quando veio.
A internação hospitalar por uma doença grave confronta o paciente com a fragilidade. Isso fica claro nas suas descrições sobre nudez, o dia em que acordou e havia defecado no leito... Isso o fez pensar? Já tinha se sentido tão exposto?
A literatura expõe as pessoas. Não exatamente da forma como deveria ser. Se eu for fazer uma média, acontece uma vez por dia: gente mandando mensagem, e-mail, parecendo meu amigo antigo, e eu não sei nem quem é. Então já existe essa exposição, o que, para mim, talvez tenha facilitado um pouco a possibilidade de escrever o livro. De fato, por outro lado, é uma situação em que a gente está totalmente fragilizado. Você fica muito vulnerável. Fui para o hospital de chinelo, segurando só o telefone e a carteira, contaminado por uma doença que matava 4 mil por dia. A questão de você estar despido, só com aquela camisola... Uma hora comentei com a enfermeira, e ela disse: “Mas aqui está todo mundo pelado. Estou acostumadíssima”. Eu falei: “Você está, mas eu não”. É o ser humano colocado ali no seu mais elementar. E perto de ser entubado. No meu prédio, além de minha mulher também estar contaminada e não ter nenhum apoio, a síndica colocou no elevador o aviso de que eu estava internado. É ilegal, ela não poderia fazer isso, causando enorme transtorno para minha mulher e meu filho. Ninguém ajudava pegando o lixo, as compras. Como é uma situação em que todo mundo está muito vulnerável, o pior das pessoas também começa a aparecer. E o Brasil foi vanguarda nesse quesito, diga-se de passagem.
Doentes a sua volta pioravam e “sumiam”. Como foi testemunhar a morte tão perto?
Era UTI, mas eu ficava isolado, tinha cortinas. Ouvia-se tudo. Tinha gente que gritava de medo à noite. Ouvia as ligações. Era tenebroso. De repente, a pessoa desaparecia. Ouvi a ligação de um senhor que seria entubado. Uma fisioterapeuta me disse que era muito duro porque, quando as pessoas vão para a UTI com outras doenças, a maioria já chega muito mal, desacordada. Quando o sujeito vai ser entubado, em geral, não está mais consciente. No caso da covid-19, a pessoa é avisada e ainda telefona. As questões humanas são muito urgentes. Imagina o estresse dos profissionais todos. As enfermeiras choravam muito. Quem mais trabalhava eram os enfermeiros, os técnicos em enfermagem. Sem parar. Os pacientes todos passando muito mal. É muito violento. “Violento” é uma palavra que descreve bem. As pessoas foram relegadas a uma violência muito grande. Isso inclui os pacientes e os médicos. Fui extremamente bem atendido, com competência, e mesmo assim era aquele desespero todo. Fico imaginando nos hospitais sem oxigênio, por exemplo. Imagina o estado dos médicos. Faltava kit entubação, remédio, improvisavam UTIs... Imagina a violência em que os médicos foram largados. Acho que ainda tem anos para que tudo isso seja colocado em pratos limpos.
Quando o sujeito vai ser entubado, em geral, não está mais consciente. No caso da covid-19, a pessoa é avisada e ainda telefona. Imagina o estresse dos profissionais todos. É muito violento. As pessoas foram relegadas a uma violência muito grande.
Uma experiência como essa muda, necessariamente, a pessoa? Isso o transformou de alguma forma?
Acho que em muitos aspectos. A literatura, realmente, não dá conta da situação toda, não está à altura. Disso não tenho dúvida. A morte daquelas pessoas... O livro tem sido muito lido por parentes de pessoas que faleceram. Recebi mensagem de uma jornalista que disse que o livro é importante porque ela perdeu o pai, também internado. O livro tem trazido, aparentemente, um certo conforto, mas esse é o conforto pós-morte, de nós que ficamos. Aquele sofrimento a que assisti, que eu estava passando, é um sofrimento particular daquela situação. Tem sido muito lido também por médicos. Acho que são esses os dois principais públicos. Eles também relatam isso: faziam o melhor que podiam, mas era algo que estava além da técnica, de todas as possibilidades. Acho que esse foi o primeiro aprendizado. Teve um senhor que depois morreu, e eu ouvi a ligação para a neta. No livro, chamo ele de Remanso, porque era de Remanso, na Bahia. Muito rico. No começo, administrava o comércio que tinha pelo celular. Uma cena estranhíssima: antes de ser entubado, ele ligou para um gerente para falar de umas contas. Poderia ter o dinheiro que fosse, né? Como disse a enfermeira, ali estava todo mundo pelado. Havia uma senhora que queria cloroquina. Começou a gritar. Tinha contato com o filho do lado de fora, o cara queria entrar, invadir. Queria que mandassem a mãe dele para um quarto porque o convênio dava direito, só que ela precisava de UTI. E a mulher gritava para que dessem cloroquina para ela. Você percebe uma espécie de desumanidade à qual as pessoas são relegadas. A outra impressão que dava era a de um mundo fechado, como se o hospital funcionasse como um organismo à parte. Você ficava lutando para voltar, para sair, e para sair pelo lugar por onde entrou.
Um microcosmo muito peculiar, né? Só vocês sabiam o que, de fato, estava acontecendo.
E as regras sociais ficam transformadas, fica tudo em suspenso mesmo.
Seu filho foi uma grande companhia virtual, ensinando-o a jogar um jogo, jogando junto. É muito bonito o trecho em que ele descreve a casa que montou para você naquele ambiente. Essa experiência foi marcante para ele também, o que fica claro após a alta. Como a doença marcou a relação entre pai e filho?
As crianças percebem as coisas. Ele ficou muito impressionado com toda a situação. Por outro lado, ele recebeu bastante apoio. Era tudo online, mas a escola deu muito apoio. Minha mulher foi muito rápida para montar uma certa estrutura de defesa, de funcionamento. Ele ia percebendo a situação toda, inclusive a fragilidade. Quando eu já conseguia me coordenar melhor, a gente passava muito tempo jogando, e depois da alta ele assumiu uma espécie de papel protetor. É meio estranho porque é uma criança. Ele também demorou um pouco para se readaptar quando eu tinha me recuperado. As crianças também organizaram esse universo. Mas você tem razão, foi bastante impressionante.
Foi um enfermeirinho, avisava os horários dos remédios...
Ele sabia muito bem o que estava acontecendo e foi fazendo a parte dele. Tenho a impressão de que as pessoas que melhor sobreviveram à situação toda foram as que conseguiram, aos poucos, fazer a sua parte, e que conseguiram, como foi o meu caso, que o mundo também fizesse a parte dele – o hospital, o transporte rápido até o hospital, essas coisas. Em um país tão desestruturado quanto o nosso, uma doença como essa acaba pegando muito mais forte ainda.
Você diz que sentiu muito medo. De quê? De morrer, de sofrer, de deixar a família?
Na dor inicial, diria que sentia o medo puro, o medo do medo. Chega determinado momento em que você pensa: “Será que já morri?”, “será que tô morrendo?”. Essa dor não faz parte da vida. Evidentemente, tenho falado muito com a minha mulher sobre a dor do parto (ela estava prestes a dar à luz uma menina no dia da entrevista). Embora, dizem as mulheres, seja muito intensa, o que melhora, o que é suportável, é que é a dor da vida. Não era o meu caso. Era a dor da morte. Parecia um medo puro mesmo, um medo paralisante, que paralisa inclusive o pensamento.
O medo perfeito, talvez.
É uma boa definição. Um medo que ultrapassa até o medo da morte. Chegou um momento em que a coisa era tão forte... No dia de uma febre tão intensa, eu suava, eles trocavam o lençol. Passavam-se alguns minutos e o lençol já estava ensopado de novo, e eles trocavam de novo. Era impressionante. Acho que esse momento foi um dos mais difíceis. Se eu, que já não sou tão jovem, mas também não sou idoso, passei por tudo isso, imagina o que é para um idoso de 80 anos. Tinha idosos de 80 anos lá. Imagino o que eles devem ter passado. Ainda resta um grande grau de revolta.
Chega determinado momento em que você pensa: ‘Será que já morri?’, ‘será que tô morrendo?’. Essa dor não faz parte da vida. Tenho falado muito com a minha mulher sobre a dor do parto (ela estava prestes a dar à luz uma menina no dia da entrevista). Embora, dizem as mulheres, seja muito intensa, o que melhora, o que é suportável, é que é a dor da vida. Não era o meu caso. Era a dor da morte.
Como você avalia o momento atual da pandemia no Brasil?
Não consigo entender como o principal responsável por uma administração tão catastrófica possa ser candidato com tanta intenção de voto. Isso me deixa... Não sei nem a palavra, acho que é revoltado. Fico pensando que, se aqueles e-mails da vacina tivessem sido respondidos (referência às mensagens enviadas pela farmacêutica Pfizer ao governo federal), muitas das pessoas teriam sido salvas, como a CPI da Covid mostrou, e mostrou com muita clareza. Toda a defesa da cloroquina... Sinto bastante revolta. Vi gente morrendo, e saber que tem político que faz gozação com quem está com falta de ar... Isso não é uma questão política, de ser de direita ou de esquerda, é uma questão de humanidade, de dignidade humana, não de posicionamento ideológico. Isso me espanta muito, mas acho que também diz muito do estado da sociedade brasileira. Não se pode nem dizer que é conservadora, é uma coisa de desumanidade mesmo. Outro som que havia lá, muito constante, era de tosse. Todo mundo tossia, uns mais, outros menos. E isso só parou quando fui transferido para o quarto, onde fiquei uns quatro dias isolado. Aí não ouvia mais som nenhum. Mas na UTI era gente tossindo o tempo inteiro, todos com o oxigênio ligado. Essa coisa da falta de ar é muito forte. E ver as pessoas zombando... E outras coisas também, daí numa dimensão mais particular. Havia um café que eu frequentava. Parei de ir durante a pandemia, só passava às vezes, pegava alguma coisa para levar e ia embora. Depois da alta, fui lá buscar um café, e teve um atendente que não quis me atender. As pessoas me colocaram apelidos, saíam correndo quando eu passava. Não que eu quisesse encontrar alguém, continuava isolado, mas as pessoas com uma espécie de preconceito a priori. Uma sociedade de preconceitos. É demonstrativo de como funciona certo estrato da sociedade brasileira.