Por Rita Testa
Psicóloga especializada em psicoterapia infantil pela Tavistock Clinic de Londres. E-mail: ritatesta@hotmail.com
Vivemos em um momento de grande desassossego da História. Como ter esperança quando nos percebemos no escuro, extraviados e com rumo ofuscado? Para responder essa pergunta, usarei um mito do povo Sioux, primeiros habitantes do norte dos EUA, entre 800 d.C. e 1876. Michael Meade, renomado pelo seu trabalho de mitologia psicológica, nos traz esse mito e seu significado, que são muito pertinentes nos dias atuais.
O povo Sioux cantava essa estória em tempos de crise quando pressentiam que sua comunidade estava perdendo a sabedoria e as pessoas se viam perdidas. Eles invocavam assim a sapiência do clã para mais uma vez tornar a sabedoria presente na consciência da cultura. Como diz Meade, a sabedoria nunca desaparece. Quando ignorada ou esquecida, ela volta à viver nas estórias e mitos. Esses podem então ser entendidos como celeiros, depósito de provisões, dos achados e perdidos das vivências de uma cultura. Tudo o que foi esquecido, ou que não foi aprendido, pode ser encontrado no que está armazenado nos mitos e estórias.
Enganosamente simples mas repleto de ensinamento, o mito do povo Sioux alerta:
O conhecimento é mantido em um lugar escuro e não visível. Lá vive uma anciã que há muito tempo tece uma vestimenta magnífica. Ela quer fazer a barra dessa roupa especialmente bela, e para isso ela usa os ferrões de porco-espinho. Com os dentes, morde os ferrões para inseri-los na malha e, mesmo com os dentes gastos até a gengiva, ela continua mordendo os ferrões e tecendo o belo trabalho. No fundo dessa caverna há um fogo sempre acesso, com um caldeirão cheio de sementes de tudo que pode germinar no coração da Terra. Por vezes, ela coloca seu trabalho no chão para ir ao fundo da caverna mexer as sementes para não queimarem. Um cachorro preto entra nesse recôncavo e vendo um pedaço de fio solto na veste, puxa o fio até desmanchá-la toda, tornando-a um emaranhado. Ao retornar, a anciã vê seu trabalho de anos de amor reduzido ao caos. Depois de um tempo olhando à destruição, ela avista um fio solto saindo dessa anarquia. Ela o pega e então tem uma visão de uma vestimenta ainda mais primorosa. E se senta... E começa tecer a vestimenta da sua inspiração.
Estamos hoje olhando o desarranjo do mundo que nos cerca. Aflitos e amendrontados, pensamos que o mundo está por terminar. A sabedoria antiga (a anciã) que vive no âmago do subconsciente nos propela a entrar nessa escuridão, nas feridas da humanidade e nas forças primitivas que trouxeram o mundo a esse momento épico de imenso desartre... e transformação.
A luz vem da escuridão. Elizabeth Kluber-Ross, especialista em luto, afirma que no fundo de cada tragédia existe uma joia a ser recuperada. E, como no mito, o caos e a criação coexistem. Perdemos a sabedoria de olhar nas profundezas. Vemos o presente emaranhado, mas não as sementes que já se preparam para germinar o novo futuro. O mundo já terminou várias vezes, e segue existindo. O caos é um prenúncio de transformação, do despregar de partes obsoletas que não mais servem e da luxação inevitável da estrutura habitual.
Meade enfatiza que, quando o mundo parece ter dado errado, agarre a linha solta que está a tua frente, pois essa é a linha pronta para ser pega. Ela é o cordão do teu gênio (daquilo que é único e superior do teu ser) e a siga. Se muitas pessoas puxarem suas linhas para o centro, receberão a inspiração necessária para a reconstrução de um novo trabalho, melhor e mais atraente do que o anterior. Como diz Meade, quando alguma coisa está faltando ou está perdida, significa que caiu fora da tua visão. E todo conhecimento é adquirido, quando então paramos na divisa do que conhecemos com aquilo que está ainda no escuro e sem visibilidade – é nessa fronteira que as respostas são descobertas ou reencontradas. Portanto, não espere encontrar soluções em lugares iluminados, pois, nesse caso, elas já teriam sido encontradas.
Os mitos, como as fábulas e lendas, são estórias orais, simbólicas e evolucionárias, criadas para transmitir a origem e a sabedoria adquirida por diferentes culturas. Estas continuam vivas, guardando nelas o desconhecido que contém as respostas que procuramos quando caminhamos na divisa daquilo que desconhecemos.