Um divórcio exige quase o mesmo comprometimento de um casamento. E quando há filhos entre o casal, um fio de consenso pode costurar uma família e mantê-la unida, mesmo em uma separação. História de Um Casamento, filme da Netflix indicado a seis Oscar, está aí para mostrar que casais na iminência de um rompimento também formam uma trama de compartilhamento.
No Brasil, a ideia de manter o conceito de família após o divórcio foi sensibilizada em 2014, com a criação de uma lei que coloca a chamada guarda compartilhada como prioritária no país. A legislação, que completou cinco anos em dezembro de 2019, dá mais liberdade para os pais e maior participação na criação dos filhos, mesmo que não exista mais um casal.
Antes de avançar no assunto, convém falar sobre separação com filhos, um tema cuja complexidade atrai o cinema e a TV – além de História de um Casamento, vale citar o já clássico Kramer vs. Kramer (1979), ganhador do Oscar de melhor filme, em que Dustin Hoffman (premiado com a estatueta de melhor ator) briga no tribunal com a personagem de Meryl Streep pela guarda do filho. Dentro das casas, o divórcio ainda é um elefante no meio da sala, a julgar pelas tentativas de GaúchaZH de encontrar casais que topassem falar sobre seu matrimônio, sua separação e a criação dos filhos.
Em muitos casos, o pai queria falar, mas a mãe não se sentia confortável. Em outros casos, ocorria o inverso. É por isso que, nesta reportagem, usaremos nomes fictícios, a fim de não expor as famílias.
Feita a ressalva, vamos em frente. Antes da nova legislação, a guarda compartilhada era apenas aplicada, na prática, em casos excepcionais – por conta de uma lei de 2008 que dava margem para outras interpretações e restringia a modalidade. Pais que ainda estavam em sérios conflitos pelo divórcio ou que morassem em cidades diferentes já eram impeditivos, por exemplo. Quando Cláudio e Patrícia decidiram se separar, em 2005, a possibilidade de adotar a guarda compartilhada para os dois filhos pequenos (de dois e de cinco anos) foi aventada após lerem uma reportagem.
— O que nos motivou foi a consciência. Quem estava se separando eram o pai e a mãe, não eram os filhos. A família continua, como continua até hoje. Iríamos achar muito esquisito se fosse como as separações na época, com horários para pai e mãe pegar filho, permissão para isso, permissão para aquilo. Vimos que a guarda compartilhada abria uma possibilidade maior de diálogo e de combinações entre os pais, sem que isso estivesse escrito na letra fria de um papel – afirma Cláudio, 52 anos, professor em uma escola no Interior.
A flexibilidade é justamente a chave da guarda compartilhada. Os pais decidem juntos qual será a escola do filho, o médico, a terapeuta, as atividades esportivas e culturais, entre outras. A ideia é que pai e mãe tenham tempos iguais de convivência, sem ficarem reféns de horários pré-determinados.
– Com o divórcio, aquele que não fica morando com o filho acaba tendo uma convivência reduzida. Aí entra a ideia do compartilhamento da guarda, para que a relação parental permaneça igual. Há possibilidade de os pais fazerem arranjos para eles mesmos se ajudarem. Por exemplo: se a mãe for hospitalizada, o pai pode ficar com o filho – explica a advogada especialista em Direito de Família, Claudia Barbedo, diferenciando do conceito de guarda unilateral, quando é exercida por somente um dos genitores e o outro convive com o filho em um rigoroso regime de horários de visitas.
450 quilômetros de distância
A mãe de Maria Clara, seis anos de idade, mora em Florianópolis (SC). O pai reside em Porto Alegre. Há dois anos, desde o divórcio, os dois criam a filha pela guarda compartilhada. A distância de 450 quilômetros entre as duas capitais não impediu que a menina convivesse com ambos.
– No início, como qualquer separação, é complicado, exige uma readaptação para todos. O ponto vantajoso da guarda compartilhada é que a criança precisa dos dois genitores presentes e, assim, ela fica mais à vontade para fazer esse trânsito na casa de um e de outro – conta Luíza, advogada de 33 anos e mãe da menina.
Luíza explica que, para eles, não existe muita formalidade na convivência da criança com os dois pais. Como os genitores moram em cidades diferentes e distantes, a menina acaba ficando na casa de cada um por um período maior, geralmente próximo aos feriados. Todas as decisões sobre a vida da filha são tomadas em conjunto e de comum acordo entre os pais:
– Ela acaba não tendo tanto contato semanal com um ou com o outro, mas em compensação o pai dela tem um casa em Garopaba (cidade que fica a 70 km de Florianópolis), e isso acaba facilitando as viagens durante o período de férias, principalmente no verão.
Vendo assim, pode parecer cansativo para a criança ficar pulando de um lado para outro. Mas Luíza garante:
– Ela gosta de viajar.
Cada vez mais presente
Desde a aplicação da lei, há uma tendência de aumento na criação dos filhos pela guarda compartilhada. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que dos 166.523 divórcios concedidos no país para casais com filhos menores em 2018, 24,4% tiveram guarda compartilhada. Em 2014, o índice era de 7,5%.
Tanto a guarda unilateral quanto a alternada já foram identificadas como prejudiciais para os filhos de casais divorciados.
RAFAELA ROJAS BARROS
ADVOGADA ESPECIALISTA EM DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES
No Rio Grande do Sul, de acordo com dados de 2018 do Registro Civil, dos 5.165 divórcios concedidos em primeira instância envolvendo filhos menores, 1.142 tiveram como decisão a guarda compartilhada (22,11%). Apesar de a modalidade estar crescendo, ela ainda gera dúvidas na cabeça dos pais. A confusão mais comum é com a guarda unilateral ou alternada – essa última já não mais reconhecida pela legislação brasileira.
– Isso faz com que muitos dos pais fiquem, em um primeiro momento, receosos e inseguros para exercer o direito assegurado à guarda compartilhada. Preferem a adoção do modelo tradicional e já ultrapassado da guarda unilateral, em que apenas um dos pais assume os deveres e as responsabilidades. Tanto a guarda unilateral quanto a alternada já foram identificadas como prejudiciais para os filhos de casais divorciados – diz Rafaela Rojas Barros, advogada especialista em Direito de Família e Sucessões.
Segundo Rafaela, a tendência à adesão da guarda unilateral tem perdido força. Mas tudo é uma questão de confiança e de conhecimento:
– Com informação e conscientização, os pais passam a enxergar com outros olhos o arranjo de convivência exigido pela nova realidade e que, comprovadamente, atende aos melhores interesses da criança, que é quem realmente importa.
O professor Cláudio comenta:
– As férias são divididas, os feriados e datas festivas são divididos. Meu apartamento tem quartos para eles. Os guris sempre encararam numa boa. Eles acabaram ficando mais distanciados desses conflitos de casal e ficamos mais presentes na vida deles.
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Tipos de guarda no Brasil
- Guarda compartilhada: é exercida conjuntamente pelos dois genitores, que compartilham a rotina e o cotidiano do filho. Não há rigidez de horários nem alternância de períodos de convivência, mas o ideal é que haja um equilíbrio de tempo e compartilhamento de funções, tarefas e responsabilidades.
- Guarda unilateral: é exercida por somente um dos genitores, que, como referencial único, na sua residência, assume os deveres e as responsabilidades para com o filho. Um regime de visitas é estabelecido ao outro genitor.
- Guarda alternada: cada genitor possui a guarda e o convívio do filho em um período exclusivo e rígido. Com isso, alternam-se dias, semanas ou meses. Não é regulada pela legislação brasileira. Seria como que guardas unilaterais sucessivas.
- Guarda nidal (ou aninhamento): é uma modalidade em que os filhos permanecem em uma residência fixa (normalmente na mesma em que residiam antes do divórcio) e os pais se retiram e retornam ao local de forma revezada.
Saiba mais
- A guarda compartilhada é a regra vigente no país. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), apenas em dois casos a guarda compartilhada não deve ser aplicada: se constatada a inaptidão de um dos pais para cuidar do filho ou se algum deles manifestar o desejo de não exercer a guarda.
- O fato de os genitores residirem em locais muito distantes (cidades diferentes, por exemplo) pode dificultar a questão da residência-base, mas não impede o exercício da guarda compartilhada, que prevalece no sentido de divisão de decisões, responsabilidades, convívio etc.
- Nesse modelo, o filho normalmente tem uma residência fixa (referencial de lar), que é determinada mediante acordo entre os genitores ou por decisão judicial. Porém, o filho pode ter residência fixa na casa de um ou de outro genitor, ou de ambos.
- A guarda compartilhada há de ser adotada mesmo – e justamente – quando ainda existir conflitos entre os pais por conta do divórcio. Assim, previne-se que ocorra um distanciamento injustificado de um dos genitores com o filho devido a mágoas não resolvidas entre os pais.
Vantagens
- Benefícios ao desenvolvimento social, educacional e psicológico das crianças.
- Maior flexibilidade e mais equilíbrio para o convívio das crianças com ambos os pais.
- Participação conjunta e ativa do pai e da mãe na vida do filho.
- Possibilidade de fazer arranjos e alterações na programação de convivência.
Desvantagens
- Pais se utilizam desse instrumento para uma aproximação ou agressão um com o outro.
- Não desempenho do papel de pai ou mãe no cotidiano do filho, já que, por conta do referencial de lar, um dos genitores é que participará mais das atividades diárias, como o tema e a hora de ir dormir.