A entidade que congrega todos os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) espalhados pelo Estado e busca preservar as tradições e os costumes do povo rio-grandense tem passado por dias intensos, marcados por discussões acaloradas – não só por conta das temperaturas escaldantes do verão. O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) está prestes a escolher um novo presidente, e apoiadores têm erguido a voz e usado as redes sociais para tecer fortes críticas ao atual mandatário e a sua concorrente: de "ditador arrogante" a "mentirosa".
O atual presidente, Nairo Callegaro, à frente do MTG há três anos e em busca do quarto mandato (que é anual), quer se manter como representante maior da entidade – um cargo voluntário que demanda dedicação para dar conta do calendário tradicionalista e dos pedidos de gaúchos dos quatro cantos. Ele enfrenta a vice-presidente de Administração e Finanças do MTG, Elenir Winck, primeira mulher na história do movimento a concorrer ao cargo.
A disputa, ambos deixam claro, é entre dois representantes da situação. O que não evitou rusgas durante a campanha.
– Não sou oposição da atual administração, até porque faço parte dela. Nas minhas falas, sempre coloco: se tem coisas erradas no movimento hoje, reparto delas também. E se tem coisas boas, elas também devem ser repartidas comigo – diz Elenir, que há cinco anos tem assumido cargos de administração no MTG.
– Todos os tipos de ataques vieram das equipes, de alguns apoiadores. Houve um ataque generalizado. Existe aquela imagem de que está tudo perfeito no movimento, mas vimos que não é assim. De qualquer forma, não nos desrespeitamos – afirma Nairo, lamentando acusações feitas durante a campanha.
O dilema das regras
Entre apoiadores, há críticas a uma "modernização" do movimento, que estaria se abrindo demais, a ponto de desrespeitar as tradições. Uma polêmica recente, em março do ano passado, levou o MTG a enviar um ofício esclarecendo o uso adequado da bombacha. Por outro lado, tem também quem afirme que, sem se atualizar, o tradicionalismo vai perder cada vez mais apoiadores. Apesar das cerca de 3,5 mil entidades no Brasil (1,7 mil delas no RS) e no Exterior filiadas ao MTG e a seus 1 milhão de associados, a percepção de alguns tradicionalistas é de que os CTGs e outros locais de manifestações tradicionalistas têm recebido menos frequentadores "espontâneos" a cada ano.
Laura Callegaro de Oliveira, diretora cultural da Sociedade Gaúcha de Lomba Grande, com sede em Novo Hamburgo, uma das mais tradicionais entidades ligadas à cultura gaúcha no Estado (são 80 anos de história), comenta:
– Não vejo que tenha diminuído o número total de frequentadores, mas talvez o espírito não seja mais o mesmo. Temos muitas pessoas que estão indo mais pela questão da competição do que pelo lado artístico, campeiro, histórico. Parece que temos hoje mais bailarinos do que tradicionalistas propriamente ditos.
Laura, que foi segunda prenda do Rio Grande do Sul em 2014, destaca que é preciso resgatar um envolvimento maior dos gaúchos dentro do tradicionalismo. Para ela, falta interesse pela "essência" do movimento:
– Precisamos trabalhar mais o espírito desses frequentadores, para que o que plantamos se torne natural, que não seja necessária uma cobrança. Costuma-se rotular que o movimento faz muitas regras, mas elas são necessárias para a continuidade do tradicionalismo. No momento em que as regras se tornam naturais, não vai mais ser necessário esse rótulo.
Jovens interessados, mas participação em baixa
Um dos mais abrangentes projetos destinados a mapear como vive e o que pensa quem mora no Rio Grande do Sul, a pesquisa Persona, encomendada pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca, mostrou, em 2017, as diferenças entre os cultuadores da simbologia gaudéria e quem defende a modernização. Muitos "sem-bombacha" avaliam que a rigidez cultural é retrógrada e machista, enquanto os "pilchados" sustentam que a flexibilização excessiva acaba por ameaçar a identidade local.
– Para a cultura se tornar objeto de devoção, é preciso engessá-la. Mas os costumes não são engessados, mudam com o tempo – apontou a professora da UFRGS e antropóloga Maria Eunice de Souza Maciel.
A pesquisa também evidenciou que a Campanha concentra a maior proporção de seguidores do tradicionalismo. Na Fronteira Oeste, 50% dos entrevistados se enquadram no perfil dos "Gaúchos Fiéis", enquanto esse índice cai para 27% na região de Porto Alegre.
Esse afastamento do tradicionalismo, no entanto, não tem sido identificado como uma marca dos jovens gaúchos. Para a folclorista Elma Sant'Ana, pesquisadora e autora de 30 livros sobre a cultura do Rio Grande do Sul, a presença de crianças e adolescentes é marcante em entidades tradicionalistas.
– Fiz dezenas de palestras em CTGs nos últimos anos, em especial sobre a participação da mulher, e em todas elas vi muitos jovens envolvidos, participando. Não só ouvindo, mas interessados na pesquisa, na história. Não sou filiada a nenhum CTG, mas acompanho eles desde muito cedo, e vejo que o entusiasmo dos jovens atualmente é grande. Parece que o MTG conseguiu se aproximar desse público – diz Elma, que teve Nico Fagundes e Paixão Côrtes como professores e foi patrona da Semana Farroupilha em 2017.
Quórum pequeno na própria eleição
Coordenadora da 7ª Região Tradicionalista no Estado, Gilda Galeazzi acredita que só entidades que se atualizarem, promovendo eventos que atraiam o público – seja com o uso de redes sociais, seja indo ao encontro das pessoas em escolas, universidades, praças, parques –, se manterão fortes. Para ela, "não adianta ficar dentro das quatro paredes".
– Não se pode mais fazer sempre o mesmo feijão com arroz. As pessoas hoje querem ter o lazer, mas também alguma diferença, e não só no tradicionalismo. Se tu fizer só jogos no mesmo campo de várzea, vai haver um público cativo, mas não vai conseguir atrair ninguém dos arredores. Isso acontece também com as entidades. Aquelas que olharem só no seu entorno, ficarem só na sua sede, dificilmente seguirão firmes – afirma Gilda.
A dificuldade de atrair novos interessados na cultura gaúcha não se faz tão nítida em eventos como o Acampamento Farroupilha, que congrega milhões de gaúchos em celebrações pelo Estado no mês de setembro. Mas, no restante do calendário tradicionalista, conforme muitos afiliados, a queda na participação tem sido clara. E pode ser percebida inclusive no próprio Congresso Tradicionalista, que neste fim de semana vai definir quem serão os próximos conselheiros e o – ou a – presidente do MTG.
A expectativa, mesmo dentro do próprio comando da entidade, é de baixo quórum nas eleições. O evento será realizado em São Borja, e cada CTG e piquete oficialmente registrado no Rio Grande do Sul tem direito a voto. Mas o pleito é presencial, em local que muda a cada ano, e a abstenção costuma ser muito alta. Conforme o MTG, o maior congresso até hoje teve apenas 900 votos, em um universo de 3 mil votos possíveis. Para Elenir, questões econômicas têm dificultado maior presença dos gaúchos na escolha do comandante do MTG; para Nairo, é preciso regionalizar a votação, realizando-a ao mesmo tempo nas 30 Regiões Tradicionalistas.