
Os presentes envoltos em papéis coloridos começavam a ser distribuídos na noite de Natal dos Rodrigues, no Jardim Estalagem, em Viamão, quando um menino de cinco anos se aproximou do portão gradeado para observar a festa, realizada na garagem da casa. Depois de alguns minutos em silêncio, apenas olhando a faceirice das crianças da família ao redor do Papai Noel, ele tomou coragem e o chamou. Patrícia, filha dos anfitriões, o policial rodoviário estadual João Manoel e a instrumentadora cirúrgica Araci, havia sido a escolhida para vestir a barba e a roupa vermelha nos festejos. Ao se aproximar do garoto, a jovem foi surpreendida com o pedido de um brinquedo. Todos os pacotes já haviam sido abertos por seus respectivos destinatários, então apenas o aconselhou a voltar para casa e esperar pelo presente durante a madrugada.
Na tarde seguinte, em uma festa comunitária, Patrícia, mais uma vez interpretando Papai Noel, deparou com o mesmo menino. Chorando, ele contou ter passado a noite esperando inutilmente pelo mimo prometido. Antes de sair correndo, garantiu que não voltaria a acreditar no Natal. Era década de 1980, e Patrícia, na época uma adolescente, ficou aos prantos porque havia destruído o sonho de uma criança. Emocionados com a situação, os pais dela juraram no ano seguinte juntar brinquedos entre os familiares e os distribui-los para as crianças da comunidade. Na ocasião, João Manoel, pai de Patrícia, assumiu o papel de Papai Noel – Araci se vestiu de Mamãe Noel. A promessa se concretizou, seguiu por quase três décadas e transformou a data em sinônimo de persistência e doação da família.
No primeiro ano da ação de Natal, a família atendeu apenas às 15 crianças de até 10 anos de idade, vizinhas da Rua Mario Rodrigues da Fonseca. Para ampliar o evento, João Manoel e sua mulher, Araci, decidiram dedicar os 13º salários de ambos apenas para a produção da festa, que desde então era preparada durante quatro meses para ser realizada no dia 23 de dezembro.

Os dois aceitavam doações de brinquedos usados – que eram recuperados pela matriarca e um grupo de amigas voluntárias. Por esse motivo, a casa da família tornou-se conhecida na região como a Fábrica do Papai Noel.

A organização era exemplar. Quando os pagamentos do casal entravam na conta, mais presentes e cestas básicas eram compradas e a quantidade de contemplados aumentava. Duas semanas antes do evento, todas as crianças eram cadastradas e recebiam uma senha para ter um minuto com o Papai Noel. Com sol ou chuva, a festa se iniciava por volta das 14h. Na fila, elas cantavam em coro: “Papai Noel, cadê você, eu vim aqui só para ter ver”. Havia voluntários para atender a todos, distribuindo água e as guloseimas aos pequenos, encaminhando-os ao banheiro quando necessário – logo o evento cresceu,
e a fila ficou quilométrica.
Como sempre fazia mais de 30ºC durante o evento, o Papai Noel surgia no fim da tarde, por volta das 19h. E só dava os trabalhos por encerrados no meio da madrugada. Aos poucos, vizinhos e outros parentes começaram a participar da preparação da festa. Eles calculam que o número de presenteados já chegou a 700.
O espírito natalino é o dar e receber
ARACI RODRIGUES
Aposentada
— É quando tu esqueces algumas coisas porque está vivendo um momento mágico. Para a criança era o presente, mas, para nós, era a doação daqueles minutos de tempo para dar um beijo, um abraço e apertar uma mão. Deixávamos todo o resto para trás — resume Araci, hoje com 66 anos e aposentada do funcionalismo público de Porto Alegre.
— Minha cabeça ficava um turbilhão. Era muita emoção a cada abraço. Tinha de ser espontâneo, sem outros interesses. Nunca visamos nada para nós — explica João Manoel, atualmente com 57 anos e também aposentado do serviço público estadual.
Só queríamos dar alegria a quem tem dificuldades
JOÃO MANOEL RODRIGUES
Aposentado
Aos 23 anos, o jogador de futebol profissional Wesley Meireles Mendes ainda se emociona ao recordar a primeira lembrança de Natal, quando tinha oito anos: a dificuldade para desembrulhar uma bola, o brinquedo mais desejado pelo guri. O presente, recebido na festa promovida pelos Rodrigues alguns anos atrás, ele relata, constituiu o começo de um sonho transformado em profissão.

— Sempre fui apaixonado por futebol, mas minha família nunca pôde me dar uma bola. Então, eu ia cedo para a fila da festa e esperava a minha vez. Lembro que, quanto mais me aproximava do portão, mais faceiro eu ficava. Via o Papai Noel e corria para sentar no colo dele. Sempre foi o meu dia mais especial do ano. Tenho saudades — confidencia Wesley, sem esconder as lágrimas.
Em 2006, após ter a história divulgada na imprensa, o casal ganhou ainda mais doadores e voluntários na organização, incluindo comerciantes e a prefeitura do município da Região Metropolitana.
Naquele ano, com a arrecadação maior, 815 crianças de todos os bairros de Viamão receberam um presente, além de um cachorro-quente, um refrigerante e uma fatia de torta. O salário extra do casal pagou o aluguel de brinquedos infláveis, espalhados pela rua – que foi fechada pela prefeitura especialmente para o evento. Foi possível, inclusive, levar parte dos comes e dos presentes para uma comunidade indígena localizada nas proximidades, com a autorização do cacique — para lá, no entanto, João Manoel não fora vestido de Papai Noel.

Memórias que emocionam
Todas as festas seguintes seguiram em grande estilo, sempre contando com a ajuda vinda de diferentes partes da Região Metropolitana.
— Eu tinha uma visão fantástica da minha garagem, onde ficava em uma poltrona próxima às lembrancinhas. Podia ver o brilho dos olhinhos, como se dissesse assim: “Ó, agora chegou a minha vez e ninguém vai me tirar daqui! É a minha vez com o Papai Noel. Chegou a minha vez! Não tinha preço. Sou um privilegiado de ter tido tantos filhos — comenta João Manoel.


Ao longo dos anos, os Rodrigues e os demais envolvidos na vizinhança colecionaram momentos emocionantes enquanto realizavam as doações. A voz da aposentada embarga ao recordar o dia em que uma idosa, acompanhada da neta já adulta, posicionou-se na frente do portão, mesmo com dificuldades para caminhar e sem ter uma senha. Araci, então, perguntou à mulher se pretendia retirar um presente para alguma criança da família, mas acabou comovendo-se com sua história.
Ela descobrira a ação de Natal por acaso e, como jamais havia ganho um brinquedo na infância, solicitou à neta para levá-la ao bairro para pedir pessoalmente um ursinho de pelúcia ao Papai Noel.
— Aquela situação nos emocionou muito. A partir daquele dia, essa senhorinha veio a todas as festas natalinas para buscar um ursinho e comer uma tortinha. Infelizmente, ela faleceu neste ano — conta a aposentada.
Outra história segue arrancando lágrimas do casal. Em um dos eventos, um menino de aproximadamente quatro anos furou a fila e entrou correndo em direção ao Papai Noel. Para não impedirem a criança, os dois decidiram dar um presente ao guri, que negou o pacote. “Eu não quero, Papai Noel, porque vou ganhar na minha casa. Só quero o teu colo”, declarou, para um casal perplexo com a resposta.
— O Papai Noel pegou esse menino, ele fechou os olhinhos e, realmente, dormiu. Levei um susto. Quando eu o tirei do colo, ele abriu os olhos e sorriu para mim. Ele só queria dormir um pouquinho no colo do Papai Noel e dar um beijo nele. Foi embora muito agradecido e feliz. Foi inesquecível — rememora Araci.


Entre os que participaram de todas as edições da festa no Jardim Estalagem estão 16 irmãos, entre os quais João Carlos e Rita da Costa Carvalho, hoje com 41 e 30 anos, respectivamente. Mesmo depois de adultos, os dois seguiram visitando o Noel. Numa das ocasiões, já com 28 anos, João Carlos pediu para sentar mais uma vez no colo do Velhinho. Sentia falta dos tempos em que ele era presenteado.
Rita afirma ter vivido os melhores natais nas festas comunitárias da Rua Mario Rodrigues da Fonseca. Ficava ansiosa semanas antes, à espera do presente que receberia das mãos do Papai Noel. Num ano, ganhou um jogo de panelinhas cor de rosa. No outro, uma Barbie. A bicicleta, o presente mais desejado, veio na pré-adolescência. Era usada, mas totalmente reformada pelos voluntários da Fábrica dos Rodrigues. Depois de tornar-se mãe, Rita seguiu frequentando a fila ao lado dos filhos, Iasmin, Kelvin, Lucas e Queice – com nove, 10, 12 e 14 anos, respectivamente.
— Não importava se era de dia ou de noite, eu estava sempre com meus 15 irmãos. Todos os anos foram especiais porque era na festa da rua que o nosso Natal começava. Sinto falta porque não existe mais a história do Papai Noel por aqui. A magia se foi — suspira Rita, sem conter as lágrimas.

Dificuldades financeiras
Há três anos, a festa precisou ser suspensa pela primeira vez devido a um problema de saúde de Araci. Os voluntários e os próprios moradores foram avisados com antecedência. Apenas os indígenas receberam algumas doações recolhidas pelo casal. A ideia era voltarem a realizar o evento em 2017, o que também não ocorreu, desta vez, devido a questões financeiras da família. A vontade de promover a festa em 2018 permaneceu, mas foi sepultada com o parcelamento dos salários do casal. Por serem funcionários públicos aposentados — ele do Estado, ela da Capital — os dois obrigaram-se a suspender de vez os festejos das centenas de crianças. Seguem apenas as pequenas doações para uma área indígena da região, e João Manoel participa voluntariamente como Papai Noel em festas comunitárias organizadas por amigos. A intenção do casal é retomar a festa em 2019, mas atendendo a quilombolas e áreas indígenas de Viamão.
— Sempre que tu faz uma criança sorrir, uma estrela se ilumina no céu — entende Araci.
— Mas o nosso espírito natalino permanece. A gente é teimoso e acredita ainda num mundo melhor. Temos que fazer o bem, sem pensar em querer alguma coisa em troca — diz João Manoel.


Mesmo com o encerramento da maior festa natalina da região, ainda é comum crianças e adultos baterem à porta da família em dezembro perguntando quando será a nova edição. Foi o que ocorreu no dia em que a equipe de reportagem de ZH esteve na casa dos Rodrigues, na segunda semana deste mês. A matriarca interrompeu a entrevista ao ser chamada por duas meninas e um menino, com idades próximas aos oito anos, que gritavam pelo Papai Noel no portão. Pacientemente, ela explicou aos três a atual situação e disse que conversaria com Noel sobre um possível retorno. Antes de despedir-se, como alguém que incorporou a responsabilidade pelos pequenos das redondezas, aconselhou-os retornarem para suas casas, pois já era tarde — passava das 19h — e ficaria perigoso permanecerem sozinhos na rua.

Apesar do fim da celebração especial que animou milhares de pequenos de Viamão nas últimas décadas, o casal mantém a tradição de enfeitar a própria casa para esperar a chegada do dia 25 de dezembro. Portas e portões ganham luzes e outros enfeites coloridos. A estátua iluminada de um Papai Noel recepciona quem chega à garagem repleta de pisca-piscas de todas as cores. A escada e as janelas ganham cortinas e fitas vermelhas em referência à data especial. É uma tradição que vem da infância de Araci, quando o avô dela, o paraguaio Leôncio Rios, se tornava o personagem mais aguardado entre os netos.
A celebração é feita sempre ao lado dos filhos, a educadora física Patrícia, 41 anos, e o soldado reformado Diego, 32 anos, da nora, Andressa Duarte, 27 anos, e dos netos Yuri, 11 anos, e Melissa, cinco anos.

Para provar que o Natal permanece entre os Rodrigues, até a repórter responsável por contar esta história foi incentivada pela família a celebrar a data. Durante a conversa, revelei não ter uma árvore natalina em casa desde o dia em que doei a minha para um parente. Quase na hora de nos despedirmos da entrevista, João Manoel surgiu com uma sacola de papel na qual se via, em ambos os lados, a figura de um Papai Noel acenando sorridente. Dentro, a surpresa: uma pequena árvore branca, com bolinhas e outros enfeites brilhantes. Era o meu presente. O sorriso saiu largo. Acabei contagiada pelo espírito natalino dos Rodrigues do Jardim Estalagem.