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Adão Fermino caminha sem pressa até a lona amarela. Aponta um canhão de luz para o palco – que só os mais atentos identificam como a carroceria de uma carreta — e contorna a plateia em direção a um trailer usado como vestiário. É noite de estreia em Triunfo, mas nem 80 das 400 cadeiras de plástico estão ocupadas.
— Não dá para se apavorar. Se um dia não dá bom, no outro dá — comenta.
Ali o homem grisalho veste uma camisa com babados, sapatos gigantescos e um sobretudo de bolinhas coloridas. Com um espelho retrovisor de Fiat 147 à mão, pinta as bochechas de branco com pomada Minâncora e passa batom vermelho no nariz. Em minutos está pronto para seu respeitável (e longevo) público – ele se apresenta em circo há 55 dos seus 73 anos, nos quais já atuou como trapezista, acrobata e piloto de globo da morte.
— Depois que a idade pegou, parei um pouco. Agora sou mais palhaço.
Palhaço e também patrão: Adão é o dono do Circo Metropolitano. Trata-se de um dos raros circos "raiz" que resistiram no Rio Grande do Sul, daqueles com mulher borracha, mágica, maçã do amor e ingresso a R$ 10. E é bem provável que você já tenha visto as carretas com desenhos do Homem Aranha às margens de alguma avenida do seu município.
— Conheço o Rio Grande do Sul de ponta a ponta. Não tem cidade em que não andei — gaba-se Adão
É difícil não ficar sabendo quando o Circo Metropolitano chega em um lugar. Assim que a lona é armada, carros de som estão na rua divulgando que vieram também "os Minions, o Spider Man, o táxi maluco do bombeiro e a oitava maravilha do século 20: o globo da morte". De quebra, deixam na cabeça dos moradores o bordão: "Circo Metropolitano... É shooow".
Quem dirige uma dessas caminhonetes é o próprio Adão. Foi assim que o encontramos no centro de Triunfo. O combinado era conversarmos no circo, mas o homem já havia saído para a jornada de duas horas de divulgação. E, para aflição da repórter, não tem celular.
— Não gosto, de jeito nenhum! Qualquer coisa, a mulher fica ligando — resmunga Adão, que ainda tira onda: — Foi milagre vocês me encontrarem.
Parte de seu depoimento foi registrado dentro da Hillux, enquanto chamava o público para a estreia naquela noite, em 14 de setembro. No começo, fazia essa divulgação em um Maverick, depois, num Corcel 2. Mas precisou investir em caminhonetes: tem a teoria de que, se o carro for barato, o povo acha que o circo não presta.
Enquanto desviava de cachorro preguiçoso no meio da rua, passava por senhores bebendo no boteco no meio da tarde, por galinheiro, por criança abanando, gritando, perguntando, Adão contou que era a sexta vez que se apresentaria em Triunfo. Já conhece a cidade de "ponta-cabeça", garante.
— Por toda cidade em que passo gosto de deixar o nome limpo. Porque saindo da cidade bem eu posso voltar.
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Naquela semana, os equipamentos do circo, reunidos em carretas, passaram um dia inteiro em uma balsa. É que vinham de uma temporada em São Jerônimo — foram 10 dias lá, como seriam 10 dias em Triunfo e, a seguir, outros 10 dias em Estrela.
— Já fico me coçando para ir embora, louco para pegar a estrada — diz Adão.
Foi essa coceira que o levou à vida mambembe: tinha vontade de ver o mundo. Descobriu como faria isso quando entrou pela primeira vez em um circo, aos 17 anos.
— Vi as moças e a rapaziada trabalhando, os empregados "ponhando" cadeira, os artistas... Achei aquilo muito bonito — lembra da experiência vivida em Londrina, no Paraná.
Resolveu ir junto. A primeira função de Adão foi armar e desarmar a lona. Uns cinco anos depois, conheceu Noeli, durante a passagem do circo por Palmeira das Missões. Ela também resolveu ir junto.
— Eu era acrobata, malandro, namorador. Ela era uma alemoa bonita, neta do dono do terreno — descreve. — Fui encostando.
Noeli aceitou o convite do "galã do circo" — nas palavras da própria – para assistir a algum filme do Lampião no cinema. E passaram a se ver com frequência, até o momento em que o circo deixaria a cidade.
— Daí peguei e inventei de convidar ela. Falei: "Só tenho essa barraquinha de lona para nós morarmos" — rememora Adão.
Noeli foi embora sem nem avisar mãe, e a barraca de quatro metros quadrados foi o primeiro lar do casal. Chegaram a fazer um buraco nela com um inesquecível incidente com uma panela de pressão, que explodiu quando a mulher cozinhava em um fogareiro de querosene. Os dois completam 50 anos de união no ano que vem. Têm três filhos.
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— Foram o melhor presente — ele afirma.
Adão viu a família inteira seguir seus passos. Seu braço direito no Metropolitano, Luciano, 43 anos, é o filho caçula.
— É meu nenê — define Adão.
Luciano é apresentador, trapezista (vestido de homem-aranha), piloto do globo da morte e o taxista-bombeiro-maluco numa das atrações mais engraçadas do espetáculo — a única que tem participação de Noeli. Sem muito contexto — que na hora nem faz falta —, a mulher de Adão sobe ao palco pedindo um táxi. Daí o bombeiro aparece acelerando um Fiat 147 (ou 148, "porque acharam mais um problema"). E tudo acaba em funk, com a Bibi, cabrita de estimação de Noeli, pulando alegremente pelo palco no meio da família.
Luciano vive desde bebê no circo. O tempo máximo que permaneceu longe foi dois meses, quando serviu no quartel.
— Já liguei desesperado: "Pai, mãe! Me tirem daqui!" — ri.
O artista teve oportunidades de deixar o Metropolitano para ganhar mais – globo da morte paga bem "no estrangeiro", comenta. Mas sua prioridade é a família. Pressionado a deixar a vida nômade, também já preferiu o circo à viver com uma mulher.
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Outra estrela é a filha de Luciano, Hellen Vitoria, 17 anos. Ela é a contorcionista, ajudante da mágica, faz número de bambolês e pilota bicicleta no globo da morte. A estudante (matricula-se em várias escolas ao longo do ano, por cada região em que passa) tem planos de continuar na carreira de artista circense. Namorando um jovem que passou a trabalhar no circo por causa dela, já pensa também em filhos, possivelmente a quarta geração dos Fermino no picadeiro.
O avô é contra ela se casar agora. Daqui uns 20 anos, talvez:
— Se ela quiser, eu compro uma carreta só para ela e mobílio.
Hellen acha graça do ciúme de Adão:
— O vô é meio rabugento, mas é um querido.
Os dois filhos mais velhos de Adão abriram seus próprios circos: Marcio Fermino, 45 anos, está à frente do Circo Mix, que atua em Santa Catarina, e a filha do meio, Norma, era estrela do Pop Star, que roda o Rio Grande do Sul. Mas, hoje, quem toca este último é o genro de Adão. Norma teve um câncer de mama, mesma doença que acometera Noeli. Fez uma cirurgia e radioterapia, mas, com a imunidade baixa, pegou uma gripe e morreu vitimada por uma embolia pulmonar.
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Quando não é o Palhaço Linguiça, Adão ri um riso cansado. Não tem a mesma alegria que tinha até um ano e um mês atrás, quando perdeu a filha mais velha.
— Ele fala que se pudesse ter trocado de lugar com ela, teria trocado — comenta Noeli.
Contorcionista, Norma é pintada por Adão como a artista de circo mais completa: encasquetava que queria fazer um número num dia e, no outro, já o estava fazendo.
O pai também lembra dela como seu xodó, a menininha que não saia do seu lado por nada.
— A mulher dizia: "Vem ficar com tua mãe". E ela: "Não, vou ficar com meu pai" — recorda, enquanto os olhos enchem de lágrimas.
Às vezes a ficha não cai. Já aconteceu de Adão anunciar o nome de Norma em vez de Hellen Vitoria durante o espetáculo.
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— Isso foi uma paulada. A gente cria os filhos para a gente morrer primeiro.
Adão não faz ideia de por onde andam seus 12 irmãos, tampouco sabe se seu pai e mãe continuam vivos. Nascido no interior de São Paulo, ele saiu de casa aos 14 anos — filho de agricultores pobres, trabalhava na roça desde os sete. Chegou a retornar um tempo depois, mas não encontrou mais os parentes.
— Ninguém sabia para onde tinham ido.
A distância das origens não perturba Adão — pelo menos, é o que ele diz. Acredita que nem é bom procurar mais pelos pais e irmãos.
— Não adianta. Já passou.
Luxo na estrada
Se Adão e Noeli dividiam uma barraca de lona no começo do relacionamento, agora moram em uma carreta com ar-condicionado Split sobre a porta recortada na carroceria, quarto com cama de casal e armário de seis portas, banheiro e cozinha completos e uma TV de 32 polegadas amarrada com cordinhas à estante para não cair em dia de mudança.
— O que tu tens na tua casa, eu tenho dentro da minha — assegura Noeli.
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Também há várias imagens de caráter religioso espalhadas pela casa, como um tapete da Santa Ceia pendurado na parede e um adesivo de São Jorge no armário da cozinha. A vizinhança é composta pelas carretas do filho, a de uma família de argentinos (que apresenta números como corda indiana e show com pombas), de uma mágica e de um outro casal, cujo marido é palhaço e malabarista.
Adão chegou a construir uma casa sem rodas, em Lajeado. A ideia era viver nela com Noeli quando se aposentasse. Mas ficam dois dias lá e não aguentam mais. Querem a estrada.
— A gente vai lá para passear. Aqui é nossa casa — explica Noeli, falando sobre a carreta.
Isso de pendurar as chuteiras também não vingou. Hoje, o plano de Adão é trabalhar até os cem anos.
— Se parar, eu fico doente — prevê.
Adão mantém um olho no futuro e outro no passado. O saudosismo dos tempos em que o circo era recebido com tapete vermelho pelo Interior volta à conversa. As coisas eram mais fáceis, segundo ele, e o povo, mais aberto.
— A gente chegava numa cidade, e vinham os vizinhos ajudar. Diziam: minha casa é do lado, podem pegar luz, podem pegar água, tudo lá. Trazia aipim, abóbora, e convidava para almoçar na casa deles. Hoje em dia não é mais aquela amizade. Quanto tu armas o circo, nem aparece criança curiosa. Só na noite do espetáculo.
Ele lembra que, em muitos municípios, não havia nada de entretenimento, portanto, o circo era a grande atração. Culpa a internet por parte da perda do público. Entre outras dificuldades, estão a proibição de apresentações com animais (o Metropolitano tinha macaco e leão) e o aumento dos custos para poder se apresentar. É necessário contratar engenheiro, chamar os bombeiros para vistoria, pagar taxa na prefeitura e alugar um terreno que nem sempre é barato — já chegaram a pagar R$ 5 mil.
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— Os circos menorzinhos, que não tinham capital, fecharam — relata Adão.
A crise do país completa a conjuntura penosa. Porque o circo é o tipo de coisa que a família mais simples (o público-alvo) corta primeiro.
Há alguns meses, o Metropolitano era composto por cerca de 40 colaboradores. Hoje, são 16. Luciano explica que os artistas foram saindo, como é comum no ramo com alta rotatividade, mas o circo não repôs a mão de obra. E precisou baixar o valor dos ingressos para R$ 10 – antes, adultos pagavam R$ 20. É a pior crise que já atravessaram, diz Luciano.
— Lucrar? Pouco. Dá para pagar as despesas — relata Adão, que não revela o faturamento. — O problema é que tu amas essa profissão.
A família faz um pouco de tudo. É o próprio Adão que, antes de se vestir de palhaço, recebe os triufenses à porta do circo. Recolhe os ingressos, sorri para as crianças, chama os pais de "patrão".
Uma foto de Teixeirinha e Mary Terezinha em moldura antiga, quase despedaçada, fica na entrada. Ela conta uma parte da história do Metropolitano — nome inclusive dado pelo músico.
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Teixeirinha se apresentava no circo na época em que Adão era só um funcionário (ele herdou o nome Metropolitano em 1989, depois que o antigo dono saiu do ramo) e rodou nele o filme Ela Tornou-se Freira (1972). O circo foi o cenário onde o cantor, protagonista do filme, e Mary se reconciliam após a personagem dela desistir do casamento para entrar na vida religiosa. Adão aparece, na trama, fazendo trapézio.
Fora do telão, Noeli passava os vestidos de Mary, e Adão se apressava para limpar os sapatos do músico quando ele chegava ao circo. Também lavava o carro de Teixeirinha. Os colegas chamavam-no de puxa-saco, mas não ligava.
— Ele merece — dizia.
Um dos motivos de tal devoção foi a ajuda dada pelo casal quando Luciano ficou doente, com dois anos de idade. Ele teve osteomielite (inflamação causada por infecção nos ossos). Teixeirinha e Mary pagaram as passagens de ônibus, arcaram com os remédios e hospedaram Noeli e o filho em Porto Alegre para o tratamento.
— Devo a Teixeirinha o fato de que meu filho hoje pode andar — afirma Adão.
Ele visitou Teixeirinha quando este estava doente, foi ao velório, no Estádio Olímpico, e, quando pode, visita seu túmulo no Cemitério da Santa Casa. Compra algumas flores e só. O amigo leva a sério o pedido feito nos versos de Testamento de um Gaúcho, nos quais canta "Não quero choro, nem vela".
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No circo instalado em Triunfo, a entrada tem uma espécie de portal, no qual dá para sentir o cheiro de serragem, usada para amenizar o barro. Quitutes tradicionais de circo não faltam: tem pipoca, algodão doce, maçã do amor e churrasquinho. O sertanejo universitário toca alto enquanto o público vai chegando, de Maiara e Maraisa a Luan Santana e mais muitos artistas que Adão nem sabe quem são. É a neta que está cuidando da sonorização, justifica.
Às 20h45min, uma gravação de voz masculina aveludada oficializa o começo do espetáculo de "arte milenar". Anunciado como "a alegria do circo", o Palhaço Linguiça é a segunda atração da noite.
— Bate palma aí, ô fedorentos! — agita Adão.
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Algumas horas antes, quando o palco ainda não estava iluminado pelos canhões de luz, Adão contou que o personagem nasceu há muitos anos, nem sabe ao certo quantos. Os colegas o chamavam de Linguiça "porque era muito seco".
Faz o show com gosto. Nem uma operação para tirar uma pedra na vesícula o afastou por muito tempo do personagem: o médico mandou ficar 60 dias de molho, mas aguentou só 30.
— Gosto do palco. Depois que tu pegas amor por isso aqui, não tem coisa melhor no mundo.
Com tom de voz alto, o oposto do que usa no dia a dia, Adão aparenta ter vários anos a menos ao se apresentar. O palhaço faz piada com sogra, conta charadas, convida uma criança para "passar vergonha" no palco.
Se o pequeno Emanuel Azevedo, três anos, assiste sem esboçar reação alguma, seu avô, o operador de empilhadeira Pedro de Azevedo, 56 anos, chega a se inclinar para frente na cadeira de plástico, de tanto que ri.
— Achei bem atrativo — admitiu depois.
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Em pelo menos uma hora e meia de espetáculo, o circo também tem magia, artista pendurada pelos cabelos, uma impressionante apresentação de corda indiana. E, quando três pessoas fantasiadas de Minion sobem ao palco para cantar Village People em "minionês", as crianças que os pais até então conseguiam conter se jogam no corredor para pular e dançar. Disputam espaço com a cadela da família Fermino, Lilica, que circulou pela plateia durante todo o espetáculo. Querência Amada, de Teixeirinha, anuncia o final do espetáculo.
Adão se desveste de Linguiça ainda mais rápido do que se vestira. Aí está a explicação da maquiagem feita com Minâncora: a pomada de embalagem redonda e alaranjada é facilmente removível, justifica Adão.
Já passa das 22h30min, e o dono do circo planeja tomar café e comer pão com mortadela antes de ir para a carreta dormir. Talvez ver TV. Os filhos entregam que ele gosta de novela.
— Só a das seis. E a das sete — justifica.
Noite de estreia era para ter atraído mais público. O que conseguiram faturar daria para pagar talvez um par de ingressos no Cirque du Soleil. Mas em seguida começa a Semana da Criança. E tem a teoria de Adão: se um dia não dá bom, o outro dá. O espetáculo não pode parar.
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