Legalizar ou não o aborto? A recusa do Senado à lei do aborto na Argentina, em agosto, não calou o debate, ao contrário, o fez crescer na América Latina, onde majoritariamente se criminaliza sua prática livre e onde apenas um em cada quatro abortos é realizado de forma segura.
Nessa região, a cada ano, 760 mil mulheres recebem assistência médica por complicações relativas a abortos inseguros, como hemorragias e infecções, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Guttmacher Institute, organização comprometida com o avanço da saúde e direitos sexuais e reprodutivos nos Estados Unidos e no mundo. Muitas delas, por medo, não procuram ajuda a tempo e acabam morrendo.
A Guatemala poderá aprovar uma lei que endurece as penas pela interrupção da gravidez, a ponto de punir com prisão os abortos espontâneos. Já o Supremo Tribunal Federal do Brasil estuda um recurso para que o aborto deixe de ser considerado um delito antes da 12ª semana de gravidez. No Chile, várias deputadas apresentaram recentemente um projeto de lei de aborto livre até a 14ª semana.
Cinco mulheres relataram à AFP suas experiências em países da América Latina com legislações que vão da proibição total, como El Salvador, onde um aborto espontâneo pode implicar penas de prisão, até o Uruguai, onde o Estado facilita a interrupção da gravidez a pedido da mulher.
Medo do tratamento
Gregória (nome fictício) é uma estudante de veterinária de 25 anos que mora na periferia do Rio de Janeiro. Quando engravidou, comprou ilegalmente, com um amigo, misoprostol, um medicamento usado para induzir o trabalho de parto.
– Meu maior sentimento foi de desespero, de não saber o que fazer, achando que ia morrer. Eu não sabia como meu corpo ia reagir, eu estava com muito medo de morrer – disse a estudante.
Ela conta que não quis ir ao hospital por medo da forma que poderia ser tratada.
– Eu conheço pessoas que foram ao hospital e foram tratadas de forma horrível. Então, eu disse a mim mesma: se eu morrer, eu vou morrer aqui, deitada. Eu comecei a sangrar, uma dor insuportável, que não desejo ninguém – lamenta.
Cidade do México: aberto legalizado e de graça
O aborto na Cidade do México é legalizado e gratuito até a 12ª semana de gravidez desde 2007. No restante dos 31 Estados, é permitido em casos de estupro ou de perigo de vida da mulher. Em Guanajuato, a prática é punível com pena de prisão de até 30 anos.
Monse Castera tem 32 anos, é uma promotora de arte e abortou três vezes legalmente.
– O primeiro foi na França, aos 21 anos. Foi uma curetagem, muito profissional, aquela em que me senti mais segura. A segunda e a terceira vez foram na Cidade do México, quando o aborto foi legalizado, aos 23 e 24 anos – conta Monse.
Após ter passado pelo processo do aborto três vezes, ela diz não se sentir culpada. Crescida em uma família ateia, ela afirma não ter ideias religiosas que a façam se sentir mal pela atitude que tomou. Para Monse, o aborto não deve ser motivo de vergonha.
– Sinto uma tristeza infinita de que, em 2018, uma mulher não possa decidir sobre seu próprio corpo. Se os homens pudessem engravidar, essa discussão não estaria sobre a mesa. Nenhuma lei deve dizer o que você faz, ou não faz, com seu corpo – afirma.
Uruguai: prática legalizada em 2013
Mariana Rodríguez, uma auxiliar administrativa de 27 anos, abortou no sistema hospitalar do Uruguai, onde a prática foi legalizada em 2013. Mariana nunca teve o desejo de se tornar mãe, afirma que não se sente preparada psicologicamente nem tem instinto maternal.
– O processo foi muito bom, me senti muito acompanhada e não me senti julgada. Durou cerca de duas semanas. Lá te dão dois comprimidos: um, você toma à noite, e o outro, no dia seguinte. Não tentaram me convencer. A psicóloga me perguntou se eu estava segura e dei meus argumentos – relata a auxiliar.
Por ser lei onde vive, Mariana conta que se considera com sorte por não ter tido que apelar para métodos caseiros, como uso de ervas ou agulhas de tricô.
– Agradeço que seja lei no Uruguai. Está perfeito como está implementado e tem que ser exemplo para outros países – afirma.
El Salvador: aborto pode ser punido com prisão
Desde 1998, em El Salvador, o aborto em qualquer circunstância, mesmo em casos espontâneos, é considerado homicídio qualificado e pode ser punido com até 40 anos de prisão. Elsi Rosales vive no campo e tem 27 anos, um filho de três e o trauma de uma gravidez que terminou com o bebê morto e ela na cadeia. Depois de passar 10 meses na prisão, foi solta, porque não se conseguiu provar que se tratou de uma morte induzida.
Com 38 semanas de gestação, Elsi começou a sentir as dores do parto, que eram desconhecidas para ela até então, já que seu primeiro filho havia nascido de cesárea.
– Nesse dia, trabalhei no campo, e os trabalhos do campo são duros, fiz muita força. Senti uma dor na parte baixa das costas. Não sabia o que estava acontecendo. Me deu vontade de ir ao banheiro e fui e, com a força que eu fiz, minha filha nasceu e caiu em uma fossa. Nesse momento, eu desmaiei – conta Elsi.
Logos após, ela foi levada ao hospital sofrendo uma hemorragia. Foi o médico que a atendeu que fez a denúncia. Ela saiu do hospital e foi direto para a prisão, acusada de homicídio.
– Fiquei um mês presa lá e, depois, me levaram para um presídio. Precisava voltar para o meu filho de três anos. Por isso, me doía quando diziam que eu podia receber até 30 anos de prisão – lamenta.
Direito das mulheres em Cuba
Josefa tem 46 anos, é professora e vive em Havana. Tem dois filhos e fez três abortos em Cuba, país que se tornou pioneiro na região, em 1965, ao legalizar sua prática voluntária até a oitava semana de gestação. O primeiro filho da professora nasceu quando ela tinha 23 anos e, em tese, ela não poderia ter mais filhos. Mesmo assim, ela continuou se cuidando para não engravidar e ficou surpresa quando se descobriu grávida.
– Estava estudando e decidi abortar. E assim aconteceu três vezes. Depois tive outra filha que agora tem 12 anos – conta Josefa.
Josefa sabe que, mesmo sendo um direito das mulheres em Cuba, muitas adotam o método como anticoncepcional e fazem o processo diversas vezes, o que pode trazer sérios problemas de saúde.
– Tive uma amiga que, por fazer uma certa quantidade de curetagens, não pôde ter filhos e hoje se arrepende. Temos o direito a escolher, mas também temos que ter consciência de que não é um jogo – diz a professora.