Eram 10h de um dia normal na vida de uma profissional afegã. E a jornalista Maryam Mehtar, 24 anos, contou que já tinha sido assediada ou agredida pelo menos cinco vezes: na rua, esperando o ônibus; na condução, a caminho do trabalho; por um homem que lhe agarrou as nádegas; por outro homem que lhe perguntou quanto cobrava por programa e por um garoto, que lhe disse que tinha "uma bela vulva".
Quando, por fim, se viu na segurança relativa da própria sala, abriu o computador para dar de cara com a oferta do colega para "deflorá-la" no Facebook.
"'Você é feia, Maryam' é o que todo mundo diz, mas imagino que seja virgem. Quando estiver pronta para transar, é só me avisar que eu terei grande prazer em...", escreveu o homem na página do Facebook de Maryam, concluindo a frase com palavras obscenas.
Estimuladas pelo levante feminino nos Estados Unidos e na Europa contra o assédio sexual, algumas afegãs mais corajosas também estão denunciando um problema que há tempos é aceito como lugar comum e insolúvel.
— A maioria das minhas amigas ficou quieta. Elas acham que, se falarem alguma coisa, vão acabar levando a culpa. E estão certas — diz a moça, que trabalha para a agência de notícias Sarienews.
Maryam é uma das poucas afegãs dispostas a identificar e constranger publicamente seus agressores, coisa que a maioria teme fazer, e não só por causa do medo da humilhação pública.
Segundo Shaharzad Akbar, 30 anos, quando a mulher se pronuncia, assume um grande risco. A assessora do presidente Ashraf Ghani diz que foi agredida sexualmente no início da carreira, quando ainda era estagiária.
— No Afeganistão, a mulher não pode dizer que enfrenta assédio sexual. Se revela a identidade do sujeito, ele vai lá e a mata, ou acaba com sua família. Não podemos jamais acusar os homens, principalmente em posições de poder, sem nos arriscarmos.
Elas não só temem a vingança dos agressores, mas, dependendo do caso, até das próprias famílias.
Zubaida, 26 anos, era policial. Seu superior lhe apalpou os seios e exigiu manter relações sexuais. Ela pediu demissão, mas não tem coragem de dar o nome inteiro para a reportagem, muito menos o do agressor.
— Sei que se revelasse o nome dele, com certeza ele mataria não só a mim, como alguém da minha família. Pior do que isso, se o caso vier a público, tenho medo de que meus próprios parentes resolvam me matar por questão de honra.
Até vítimas de estupro são assassinadas muitas vezes pelos familiares, para quem a vergonha atrelada à violação é pior ou até maior do que o sofrimento da vítima.
— No Afeganistão, somos mártires e algozes ao mesmo tempo. Não posso nem falar para a minha família que me demiti por causa de assédio. As ocidentais têm muita sorte — lamenta Zubaida.
Uma mulher de 31 anos, que teme ser morta junto com os filhos se seu nome for revelado, voltou ao Afeganistão depois de morar vários anos no Irã. Tinha se formado lá e, com curso superior, não demorou a encontrar um emprego na sede do governo da província de Ghazni.
Na primeira semana de trabalho, o diretor do departamento a empurrou sobre um móvel e tentou agarrá-la; ela saiu correndo e pediu demissão. Em Cabul, foi tentar comprar um terreno do governo e o responsável pela seção começou a lhe enviar nudes de si mesmo e a sugerir que deveriam ter relações, quase sempre através de mensagens no Facebook.
O assédio que muitas enfrentam se estende até a funcionárias de instituições internacionais ou ocidentais, segundo várias mulheres entrevistadas.
Uma delas desistiu do cargo público que tinha depois do assédio incessante, e abriu a própria ONG. Começou a se inscrever para receber benefícios da ONU, da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional e várias embaixadas ocidentais.
— Era sempre a mesma coisa. O funcionário afegão dizia: "Aprovo sua proposta se você transar comigo". Todo mundo acha que afegã que trabalha fora é prostituta. Os homens podem dizer e fazer o que bem entenderem com elas — desabafa, pedindo para não ter seu nome divulgado porque ainda espera conseguir fundos e não quer irritar os possíveis doadores.
As mulheres na imprensa são vítimas particularmente frequentes, em parte por causa do perfil público e porque geralmente usam as redes sociais na base da identidade verdadeira, atraindo assim todo tipo de assédio sexual, geralmente de homens que nem se preocupam em ocultar o nome, e cuja violência quase sempre envolve o envio de fotos íntimas explícitas.
Quando Maryam expressou sua opinião nas redes sociais, dizendo que as mulheres afegãs não estão seguras nem dentro de casa, recebeu uma enxurrada de mensagens de ódio e comentários sexualmente violentos. Foram centenas de manifestações, através do Facebook e do Twitter, que fez questão de arquivar. Uma delas foi de um escritor afegão chamado Jalil Junbish, que se autodenomina "autoridade nos direitos das mulheres" e disse: "você é uma vadia e transou com vários homens".
Quando interpelado pelo Messenger do Facebook a respeito da agressão, não confirmou a autoria, mas repetiu a acusação. "Maryam é vadia, sim. Por quê? Você é a amiga dela? Então é vadia também", respondeu à repórter afegã do New York Times.
Em um dos casos mais ultrajantes ocorridos recentemente no país, no mês passado, um coronel da Força Aérea afegã foi acusado de exigir relações sexuais de uma subordinada. A mulher gravou secretamente o ataque, mostrando bem o rosto dele, não deixando dúvidas sobre sua identidade. Postado no Facebook anonimamente, esse vídeo se tornou viral no Afeganistão.
O General Dawlat Waziri, porta-voz do Ministério da Defesa, informou que o Coronel Ghulam Rasoul Laghmani tinha sido detido e estava sob investigação, mas até agora ninguém o acusou formalmente de assédio. E disse também que as autoridades não conseguiram encontrar a mulher, cuja identidade o vídeo não deixa clara.
O governo afegão tomou algumas medidas para combater a violência sexual, vista como uma das principais razões por que o país nunca conseguiu realizar suas metas de recrutamento de mulheres para os postos de policial e soldado: elas ainda representam menos de 1% das forças de segurança.
Recentemente, os Ministérios do Interior e das Comunicações criaram, juntos, linhas telefônicas especiais para denúncias de abuso, com números separados para mulheres (989) e homens (999). Uma vez que o primeiro é encarregado da polícia, muita gente assumiu que o serviço fora criado para revelar os problemas enfrentados pelas mulheres na instituição.
Uma atendente, contudo disse que essa não era a sua função e que lidava apenas com os casos de assédio mais violentos ou urgentes.
— Se um policial a assediar, você tem que lhe dar um tabefe, ou pedir para que outras mulheres façam o mesmo. Não podemos ajudá-la.
Por Rod Nordland e Fatima Faizi