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Evento não fictício. Com essa frase no topo da descrição, os organizadores querem deixar claro para os quase dois mil confirmados no "Dia de Geral Cair no Soco em Caxias do Sul" a intenção de tornar real, no próximo dia 18, a proposta de transferir para os punhos as frustrações e o estresse cotidianos numa tarde de batalha campal. Com a preocupação de criar novas regras e escolher o melhor local conforme a iniciativa viraliza, o dono da ideia sabe que a dor de cabeça será maior do que a provocada por eventuais pancadas. Mas Giovanne de Nardi, 27 anos, está disposto a encarar as consequências para desmitificar o gosto pela "trocação de socos", como diz, consentida e sem covardias.
Fazendo combinar com os cabelos compridos as camisetas de heavy metal e os coturnos, Giovanne é um cara do bem, daqueles que fazem questão de chamar o interlocutor pelo nome para demonstrar respeito pela conversa. Trabalha em um conhecido bar da cidade, joga em um time de rúgbi _ um dos esportes coletivos mais procurados por quem gosta de explorar a própria força através do contato físico. Já praticou kickboxing, mas está parado há alguns anos. A inspiração para o Dia do Soco mistura o gosto pelas brigas de torcidas inglesas (os chamados hooligans) e as batalhas retratadas em filmes com algo que Giovanne e o amigo Cléber Reis, 24, escudeiro na empreitada, chamam de libertar o animal que cada um tem dentro de si.
– A maioria quer experimentar como é estar em uma batalha campal. Um exército de frente para o outro, trocando porrada, mas com regras que garantam o respeito ao adversário. Quem está no chão não apanha, ninguém bate pelas costas, ninguém usa qualquer tipo de arma ou acessório. Não queremos que ninguém se mate, nem queremos presença de "bondes", por isso estamos montando uma boa equipe para fiscalizar. Trata-se apenas de libertar os demônios saindo na mão de forma sadia e na esportiva, sem selvageria. Não queremos que ninguém vá na maldade – justifica.
Diante das proporções que a ideia tomou com o passar dos dias até chegar a quase duas mil confirmações, incluindo grupos que prometeram se deslocar de vans de outras cidades, foi preciso readaptar. Do Parque dos Macaquinhos, agora a intenção é transferir para o estacionamento dos Pavilhões da Festa da Uva. A idade mínima passa a ser 18 anos. E para amenizar as críticas daqueles que os acusam de não gastar energia com algo positivo para a sociedade, será cobrado algo como um quilo de alimento ou um brinquedo na entrada, como inscrição. Isso tudo, claro, se o evento sair das redes sociais e de fato ocorrer.
– A gente sabe que vai se incomodar, cedo ou tarde. Mas vamos tentar minimizar isso. Proibir menores de idade acho que já ajuda muito. Ainda não procuramos a Brigada Militar, mas estamos esperando que eles nos procurem. Sabemos que a BM será contra, mas queremos discutir por que é ruim dar um soco na cara de alguém que se dispôs àquilo. O que é violência, afinal? – questiona Giovanne.
BM descarta evento em local público
Embora a ideal original seja de que o Parque dos Macaquinhos ou o estacionamento dos Pavilhões da Festa da Uva sirvam como possíveis locais para o Dia do Soco, é muito difícil que a atividade possa ocorrer em área pública ou de acesso público. É o que afirma o comandante da Brigada Militar em Caxias do Sul, major Jorge Emerson Ribas. De acordo com Ribas, a corporação irá monitorar a possível realização do evento.
_ No que depender da Brigada Militar, não existe a menor hipótese desse evento ocorrer em local público e de acesso público. Se estiver ocorrendo em um local privado, entre maiores de idade que estejam participando de forma voluntária, seria preciso analisar melhor. Neste caso, iremos estudar a legalidade dessa realização e procurar mecanismos para impossibilitar que ocorra _ afirma o comandante.
Ribas acrescenta que os organizadores podem responder à Justiça por incitação à violência ou rixa, caso sejam constatadas essas características no evento.
_ Nós iremos monitorar e devemos procurar os organizadores. Eles podem responder criminalmente por incitação à violência, assim como os participantes podem responder por lesões corporais ou rixa. Neste caso, independe da vontade de brigar ou não. (Se configurar uma rixa) Todos os envolvidos responderiam criminalmente.
Lutadores profissionais são contra
Organizador de eventos de MMA em Caxias do Sul e instrutor no centro de treinamentos que leva o seu nome, Jorge Velho é radicalmente contra a organização do Dia do Soco, do qual ficou sabendo através de um aluno. Considera uma irresponsabilidade, principalmente pela discrepância entre lutadores muito preparados e outros sem qualquer tipo de conhecimento técnico, que fatalmente irá resultar em participantes gravemente machucados.
– Um evento como esse precisa de uma federação, árbitros, médicos, ambulância, termo de responsabilidade. O que vejo é uma baderna. Um cara que sabe brigar, e sabe o lugar certo onde bater no adversário, pode ferir com gravidade alguém que não sabe. E se alguém cair com a cabeça ou levar uma pancada e ficar paraplégico, ou vir a morrer? O organizador certamente terá de prestar esclarecimentos à polícia e ao Ministério Público – avalia.
O lutador Adilson Facchin, instrutor da academia Fight Center, de Caxias, também é contrário. Porém, pondera que se as pessoas são adultas e, caso se responsabilizem pelo que fazem e pelas consequências, só podem ser proibidas por uma autoridade maior. Ilustra com uma analogia aos rachas entre carros, quando deixam de ser feitos em vias públicas para serem realizados em autódromos privados.
– Como desportista, acho inviável a realização de um evento como esse, sem uso obrigatório de equipamentos de proteção, sem arbitragem para fiscalizar as regras. Não se trata de um esporte, mas sim de de uma briga, onde algumas pessoas irão usar técnicas de luta e podem estar identificadas com material de academias. Irão sujar uma imagem que nós ralamos muito para construir em torno dos esportes de luta – considera.
ENTREVISTA
"Jovens cujas vozes talvez não estejam sendo ouvidas"
A psicóloga caxiense Janete Rossi cita o filme Uma Noite de Crime (2013) para traçar um paralelo com o que considera ser a motivação para tantas pessoas, especialmente jovens, mostrarem interesse em participar de um evento como o Dia do Soco. Na sociedade retratada nesta obra de ficção, é dada às pessoas o direito de cometer qualquer tipo de crime durante 12 horas, uma vez por ano, como forma de expurgar demônios internos através da liberação do instinto assassino. Janete, porém, considera que, embora a agressividade seja um comportamento justificável, a violência nunca é legítima. Abaixo, confira uma entrevista com a psicóloga.
Pioneiro: Como podemos interpretar uma adesão tão grande, principalmente de jovens, a um evento como o Dia do Soco?
Janete Rossi: A agressão é um comportamento natural do ser humano, desde o ato da alimentação. Quando se vive sentimentos de revolta e frustração, isso gera um processo de agressividade e a necessidade de expurgar isso. Um evento como o Dia do Soco surge dessa necessidade. O interessante é pensar que isso sempre existiu, manifestado entre guerras, brigas entre etnias, por exemplo. Insatisfações e frustrações colocadas para fora pela agressividade. A violência é um instrumento utilizado para substituir o diálogo. Aquele que não consegue extravasar pela comunicação o faz de maneira inadequada, pela violência. É a forma encontrada para transgredir e chamar a atenção para si. Os jovens que estão aderindo ao evento acham que a única forma de liberar o que precisam é através do ato de violência, talvez porque a suas vozes não estejam sendo ouvidas.
O fato da troca de socos ser consentida torna esse ato legítimo?
O senso comum gera um comportamento coletivo que faz com que as pessoas se unam como uma forma de dizer que estão escolhendo liberar a agressividade porque o colega também escolheu. É uma forma de ser aceito pela tribo. Trata-se da liberdade de fazer uma escolha movido pela necessidade de estar inserido em um grupo de amigos ou colegas. Eu me submeto a levar pancadas porque preciso fazer parte desse grupo. Então, é preciso entender quem está fazendo parte disso. São pessoas com a capacidade de fazer uma escolha adequada? Um adulto que saiba como liberar seus demônios pela oratória, com atitudes mais adequadas, vai fazer parte desse grupo? Seria bom olhar para isso depois de acontecer. Há pouca liberdade de escolha com consciência. A consciência que leva à reflexão, que por sua vez leva a arcar com o ônus e bônus dos atos, está muito prejudicada. Pensar o que faço, o que quero do mundo, por onde estou caminhando. A pessoa não pode negar o seu "eu" interior, deixando de se conhecer. Isso é o que fará ela ir até onde não gostaria de ir sem refletir sobre. Havendo reflexão, ela pensará duas vezes antes de recorrer à violência.
É justificável que se organize um evento com o propósito do Dia do Soco?
A violência pode ser justificada, mas nunca legitimada. Trata-se de um ato que pode machucar, denegrir, traumatizar. Eu não acredito que as pessoas sejam violentas por natureza. Minha linha de pensamento é a de que a violência está ligada ao social e à falta da possibilidade de falar e agir de outra forma. Se eu conseguisse dizer o que preciso e fazer o que preciso fazer de outra forma, não recorreria à violência. Se eu tenho raivas e preconceitos, deveria trabalhar a forma de pensar, que está distorcida. A sociedade e a própria mídia me faz pensar de forma distorcida, até o ponto em que eu vou agredir o outro por não saber lidar com isso.
O que a senhora diria para um jovem que dissesse estar interessado em participar do Dia do Soco?
Eu perguntaria o que o faz pensar que ele gostaria de participar disso, quais as motivações. Faria com que ele começasse a refletir sobre isso. E se a resposta fosse a raiva, perguntaria se não há outra forma de resolver sem ser na pancada, que fará com que ele sofra o ônus também. Existe uma complexidade na liberdade de agir que não está sendo levada em conta.