A cruzada de uma família de Gramado adepta da educação domiciliar ganhou um capítulo polêmico nesta semana. Moisés, 37 anos, e Neridiana Dias, 36, querem que a formação escolar de Valentina, filha de 15 anos que não frequenta escola desde 2011, seja legalmente reconhecida - o que pode garantir o direito de educar em casa não só para eles, mas para outras famílias brasileiras que acreditam no método. No entanto, uma petição defende que a menina precisa da escola para ser resguardada da família. A Procuradoria Geral do Estado (PGE-RS) pediu para ingressar na ação, movida originalmente contra o município de Canela. Na petição, o procurador menciona que um dos objetivos da educação é preservar os filhos dos pais.
Até 2011, Valentina era aluna da Escola Municipal Santos Dumont, no interior de Canela. Multisseriada, o colégio tinha cerca de 15 alunos de diferentes anos compartilhando a sala e a professora. Os pais observaram que Valentina avançava nas séries, mas não absorvia todo o conteúdo, com dificuldade principalmente em matemática.
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Paralelamente, a família conheceu o método de educação domiciliar, ou homeschooling. Ao final do 6º ano do ensino fundamental, Moisés e Neridiana decidiram, em conjunto com a filha, assumir a formação educacional da guria. Sem matrícula e sem frequência escolar, os pais sabiam que seriam procurados pelo Conselho Tutelar e poderiam responder judicialmente. Então, os Dias se anteciparam: solicitaram à Secretaria Municipal de Educação o direito de educar a menina em casa. Ela iria à escola apenas para prestar provas. Diante da negativa da secretaria, a família entrou com um mandado de segurança na Comarca de Canela. O pedido foi julgado improcedente, assim como no Tribunal de Justiça do Estado.
Barroso ressalta que é preciso definir os limites da relação entre Estado e família na educação. Ele argumenta que a questão é importante porque há previsão legal de "liberdade de ensino e pluralismo de ideias e concepções pedagógicas" e porque o reconhecimento do ensino domiciliar pode reduzir os gastos públicos com educação. A decisão do STF embasará o julgamento de outros casos semelhantes ao da família de Gramado.
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Os Dias, no entanto, estavam cientes que o caso não seria julgado nas primeiras instâncias e recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em maio deste ano, a primeira surpresa: o STF, através do Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, reconheceu a necessidade de analisar a constitucionalidade do ensino domiciliar. Pela primeira vez, a família teve esperança de ser reconhecida oficialmente como educadora da própria filha.
Na última segunda-feira, a PGE encaminhou uma petição para fazer parte da ação, o que já era cogitado pela família. O inesperado foi a argumentação adotada pelo procurador Luís Carlos Hagemann. Além de mencionar que o Rio Grande do Sul tem escolas públicas que proporcionam educação gratuita e que o Estado fiscaliza e controla o ensino nas escolas através do Conselho Estadual de Educação, ao final da petição citou o filósofo espanhol Fernando Savater.
Em recente palestra em Porto Alegre, Savater arrancou risadas da plateia ao afirmar que "um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais". Ele completou o raciocínio afirmando que a escola não ensina apenas conteúdos, mas também a prática da socialização e da convivência.
O argumento do procurador pegou a família desprevenida no fim da tarde de quinta-feira.
- É estranho, para não dizer infeliz, esse argumento. Coloca em dúvida todas as famílias que se preocupam com a educação dos filhos. Nós, nitidamente, queremos o melhor para eles, não o contrário - desabafa Moisés.
Em nota, a procuradoria afirma que "a relevância da matéria impõe à PGE-RS, no exercício de suas funções institucionais, conhecer as teses e argumentações jurídicas que podem influenciar na mudança substancial de aspectos da ordem constitucional".
Rotina regrada e acompanhamento profissional
Quando a família decidiu tirar Valentina da escola, também optou por rever toda a matéria do 6º ano. Os três filhos mais novos dos Dias nunca frequentaram escolas. João Pedro, 9 anos, foi alfabetizado em casa, caminho seguido por Isabela, 6, e por Ana Clara, 3. Os pais adotam o Caderno do Futuro como material didático, livro empregado também em escolas regulares. Uma professora graduada em Letras vai à casa da família uma vez por semana para revisar e corrigir as matérias, esclaracer dúvidas e passar lições. Nos outros dias, Moisés e Neridiana se revezam no acompanhamento dos quatro filhos, em uma rotina que se inicia por volta das 8h30min e só termina na hora de dormir.
- Tudo é ensino. A gente estuda germinação dentro de casa e depois vai na horta ver, na prática, o que é isso - exemplifica Neridiana.
A família mora há oito anos em um sítio a quatro quilômetros do centro de Gramado. O pai é microempresário, e a mãe, dona de casa. Ambos têm ensino superior incompleto.
- A gente aprende e estuda junto. Algumas coisa a gente esquece, mas uma pesquisa na internet deixa tudo mais fácil - afirma Moisés.
Os pais garantem que a sociabilização, um dos pontos mais criticados no método, não é um problema na família. Além de manter contato com vizinhos e ex-colegas, os filhos frequentam grupos da igreja e clube de desbravadores (uma espécie de escotismo) e se relacionam com outras crianças e adolescentes que também estudam pelo mesmo método.
- A gente não é contra a escola ou acha que toda escola é ruim, a gente só acredita que este é o melhor método para os nossos filhos - afirma Neridiana.
O que é educação domiciliar:
O aluno não frequenta escolas formais. Todo o aprendizado se dá em casa, sob orientação e supervisão dos pais a partir de currículo preestabelecido, semelhante ao adotado nas escolas. De forma geral, não há participação de professores. Regulamentado em 63 países, o homeschooling não tem amparo legal no Brasil, conforme o Ministério da Educação (MEC), com base no artigo 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB): "É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade", diz a LDB.
Contrariando a lei, segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), atualmente cerca de 2,5 mil famílias brasileiras educam seus filhos por meio do ensino doméstico ou da desescolarização.
Os alunos de educação domiciliar podem ter o ensino validado através de aprovação em provas. Há casos de aprovação no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) que também equivale à conclusão do estudo regular.
Educação
Procuradoria argumenta que objetivo da educação é "preservar os filhos dos pais" em ação de família de Gramado
Família de Gramado luta no STF para educar os filhos sob o método de educação domiciliar. Petição da Procuradoria Geral do Estado afirma que escola serve para preservar os filhos dos pais
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