De um exercício despretensioso para testar os lápis de cor surgiu um potente apelo contra o preconceito e o aprisionamento em estereótipos. O livro Mulheres - Retratos de Respeito, Amor-próprio, Direitos e Dignidade, da designer mineira Carol Rossetti, lançamento da Sextante, apresenta personagens protagonizando situações cotidianas em que ficam evidentes os padrões excludentes que norteiam a sociedade e o cerceamento à autonomia feminina.
Almejando também a atenção do público masculino e com situações que podem ser facilmente transpostas ao universo dos homens, o livro transita entre uma grande variedade de questões sobre corpo, vestuário, identidade, amor e escolhas. Cada ilustração é acompanhada de um pequeno texto, contrapondo um comentário que critica ou desqualifica a mulher a outro que valoriza a diversidade e as peculiaridades de cada uma: por exemplo, "Jane ouve de várias pessoas que ela 'ficaria muito bonita se emagrecesse'. Jane, sua beleza e seu amor-próprio não são medidos em quilos (e é provável que quem lhe disse isso fosse mais bonito se tivesse a língua menor)" ou "Letícia cortou o cabelo bem curtinho e o pessoal do trabalho perguntou se ela 'virou sapatão'. Letícia não entendeu, mas conferiu mesmo assim que continuava calçando 36. Tem que rir pra não chorar, né, Letícia?". É provável que até o mais liberal dos leitores conclua ser também um propagador de intolerâncias, ainda que encobertas pelo pretexto do humor.
Carol, 27 anos, lançou-se a um exercício de inclusão, tentando representar diferentes tipos de pessoas, contemplando cor, raça, religião, classe social, orientação sexual e constituição física. O projeto se tornou mais brangente à medida em que as ilustrações se propagaram a partir da página da designer no Facebook, estimulando os seguidores a enviarem sugestões. O debate online também mostrou revezes _ Carol se viu forçada a deletar comentários agressivos demais, nos quais aflorava a intransigência que pretende combater.
Permeia todo o trabalho a defesa de uma das ideias mais caras à autora: a mulher deve assumir suas escolhas e preferências sem medo de ser julgada pelos outros. Carol sugere que os comportamentos e as práticas diárias sejam submetidos a uma avaliação: o que é vontade própria e o que se trata apenas de uma repetição irrefletida daquilo que quase todo mundo está acostumado a fazer?
- A autoaceitação é muito importante para a gente ser feliz e desenvolver o que nos faz feliz. Por muito tempo, fomos ensinadas a esconder, reprimir algumas coisas. Ou fomos ensinadas, ou fazemos isso porque não queremos ter um choque com a sociedade. Acho que muita mulher adoraria parar de se depilar, mas a cada vez que aparecer com o sovaco cabeludo no Natal vai ter que conversar sobre isso com a família inteira, e nem todo mundo quer - exemplifica a designer. - Você tem que decidir o que quer fazer, o que não quer, o que vale a pena, o que não vale. Tem que passar pela reflexão do que você realmente gosta, quer, sente - recomenda.
A autora combate também a frequente associação entre ascensão profissional e beleza. Para Carol, a mulher é levada a acreditar, de forma consciente ou não, que só pode ter sucesso se for bonita.
- Mais do que questionar os padrões de beleza, temos que questionar o quanto a beleza tem de ser relevante. Todo mundo gosta de coisas bonitas, mas no caso das mulheres isso surgiu de forma quase patológica. A mulher pode estar em uma carreira que não dependa da beleza dela, mas ela vai ser avaliada o tempo todo pela beleza, de uma forma que os homens não são - afirma a ilustradora, citando a tenista russa Maria Sharapova, que costuma ter a aparência analisada às minúcias. - Temos que questionar isso. Se você não for bonita, se não for a mais bonita ou se não estiver tão bonita hoje, não tem problema - completa.
Os temas mais perturbadores e polêmicos estão na seção final, intitulada Valentes, onde Carol concentrou questões que evidenciam, a seu ver, um problema de conscientização de parte expressiva da população: a culpabilização da vítima. Aparecem aí ilustrações sobre violência sexual ("Quando Margot contou às amigas da tentativa de estupro que sofreu em uma festa, algumas disseram que ela 'estava pedindo' por causa das roupas que estava usando"), vazamento de fotos íntimas na internet ("Tejaswini, você não fez nada de errado. A vergonha deveria pesar apenas sobre quem decidiu deliberadamente lhe causar dor e constrangimento") e dependência química ("Yumi passou por momentos difíceis por causa do seu vício, e muitos não entendiam que não era uma simples decisão de parar que resolveria o problema"). Na abertura do capítulo, a designer alerta: "Devemos estar atentos para não julgar as pessoas sem conhecê-las. Há muito mais no outro do que o que enxergamos em um primeiro momento."
Ativistas recomendam que público conteste humor ofensivo
A desconstrução dos estereótipos está entre as principais reivindicações de quem batalha pela igualdade de gêneros. Resistentes, lugares-comuns que estigmatizam as mulheres ainda são frequentes em telenovelas (com a empregada doméstica negra), comerciais (a gostosa de biquíni servindo cerveja ao homem) e programas de humor (a personagem burra de quem os demais debocham). Ideias preconcebidas também são reproduzidas a todo instante em círculos de conversas, na família ou no trabalho, e essa intolerância, mais ou menos evidente, passa muitas vezes despercebida pelos falantes.
- Um dos aspectos mais cruéis é que a gente acaba reproduzindo mesmo sendo vítima desses padrões - lamenta Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, de Brasília.
Gabriela reconhece que o tema tem sido mais debatido nos últimos tempos, principalmente com o potencial multiplicador das redes sociais - Carol Rossetti divulga as ilustrações de Mulheres em uma página com mais de 260 mil seguidores no Facebook -, o que permite impulsionar a conscientização e as ações por parte do público. No início deste ano, a Skol alterou uma propaganda depois que cartazes com a frase "Deixei o não em casa" geraram repúdio ao serem interpretados como apologia ao estupro e foram pichados (mulheres ofendidas com as peças acrescentaram "e trouxe o nunca"), em uma contestação que viralizou na internet. Com as denúncias de consumidores, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu uma representação contra a campanha.
- O que modifica o cotidiano são as pequenas coisas: questionar as certezas e as formas de humor que não são engraçadas, mas violentas. Temos que provocar as instituições a tomar posição - orienta a pesquisadora.
Para Sâmia Bomfim, militante do coletivo Juntas!, que combate a violência sexual na Universidade de São Paulo (USP), é preciso intensificar, nas escolas, o debate sobre a desigualdade entre homens e mulheres. Os pais, em casa, também têm um papel fundamental a ser desempenhado, promovendo uma divisão igualitária de tarefas, sem delegar o cargo de "ajudante" na cozinha ou na faxina apenas às meninas. Ao poder público, cabem as iniciativas para promover a conscientização, e, à mídia, o estímulo a programas educativos, e não opressores. Quem defende as causas das mulheres, ressalta a ativista, também luta contra um forte estereótipo.
- É muito difícil. As pessoas ainda veem a feminista como a mulher louca, descabelada e sem blusa que vai matar os homens - descreve Sâmia, que saúda o engajamento de personalidades como as cantoras Beyoncé, Pitty e Valesca Popozuda. - Elas descontroem o estereótipo, a ideia maluca do feminismo, e dão uma cara mais natural ao movimento.
Pela igualdade
Ilustradora condena estereótipos e valoriza diversidade no livro "Mulheres"
Mineira Carol Rossetti aborda questões sobre corpo, vestuário, identidade, amor e escolhas em defesa da autonomia feminina
Larissa Roso
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