Em uma noite de sexta-feira, 50 pessoas bem vestidas lotaram um apartamento no bairro nova-iorquino de Hell's Kitchen para a festa em homenagem a Sheela-Marie Padgett, ex-bailarina de 57 anos do Balé da Cidade de Nova York. Os garçons circulavam com bandejas de bebidas antes de ser servido o jantar, um bufê sofisticado de comida indiana. A seguir, veio o bolo de chocolate da Erotic Bakery, em formato de uma dançarina de corpete com o membro masculino, que foi cortado e servido aos convidados.
O que não deixa de ser apropriado, já que, na manhã seguinte, Sheela, antes conhecida como Bruce, voaria a Scottsdale, no Arizona, para cumprir o último passo na transição homem-mulher: a cirurgia de mudança de sexo.
Um por um, os amigos se aproximaram da mesa para parabenizá-la - e praticamente todos disseram que Bruce era cínico, retraído e mordaz, enquanto Sheela era meiga e vibrante.
- É como se fosse outra pessoa. Antes, vivia no escuro. Agora, parece que as luzes se acenderam - compara o fotógrafo Edwin Pabon.
- É verdade. Meus amigos tinham medo de mim. Eu era uma pessoa horrível. Vivia infeliz, e isso afetou todos os meus relacionamentos - diz Sheela.
Professora transexual leva experiência à banca de mestrado
Lori Ogle, outra amiga, elogia:
- É preciso muita coragem para fazer o que ela está fazendo, principalmente porque já não é jovenzinha. Temos a mesma idade. Não sei o que gostaria de mudar, mas essa atitude inspira, nos estimula, mostrando que nunca é tarde.
A conscientização sobre a questão dos transexuais cresceu no último ano. Em junho, a atriz Laverne Cox, da série Orange Is the New Black, foi capa da Time. Janet
Mock registrou a transição de homem para mulher no livro Redefining Realness, que chegou a encabeçar a lista dos mais vendidos do New York Times em 2014.
Modelos como Andreja Pejic desfilaram nas passarelas de Nova York e Milão, e marcas famosas, como a Barneys, já usam transexuais em suas campanhas publicitárias.
Foi a série de sucesso da Amazon Transparent, sobre um septuagenário pai de três filhos que se revela transgênero, que abordou um segmento praticamente ignorado da população transexual: aqueles que passam por uma mudança de sexo na meia idade, às vezes com 60 ou 70 anos. E o buzz sobre o seriado coincidiu com o frenesi na imprensa a respeito das mudanças drásticas na aparência de Bruce Jenner, medalha de ouro no decatlo na Olimpíada de 1976 e padrasto de Kim Kardashian.
Urgência e coragem
Revelar-se transexual não é fácil para ninguém, mas fica mais espinhoso para quem resolve tentar se encontrar décadas depois de construir uma vida adulta, família e carreira. É, no mínimo, um paradoxo, pois representa o renascimento na idade madura.
Os transgêneros tardios cresceram em um período de estereótipos sexuais rígidos, pelos quais foram oprimidos. Muitos deles são casados e têm filhos, os quais não conseguem aceitar que a pessoa que os criou esteja se tornando alguém diferente.
Os desafios não são só físicos, mas pragmáticos, principalmente para as mulheres trans (que nasceram com a anatomia masculina e fizeram a transição): o queixo e os ombros masculinos ficam mais largos com o tempo, dificultando a definição de uma silhueta mais "afeminada"; há pelos crescendo em várias partes do corpo, mas escasseando na cabeça, o que exige transplantes ou perucas.
Tudo isso tem consequências emocionais profundas para um grupo que enfrenta não só a questão da sexualidade própria, mas a indignidade resultante do envelhecimento e da mortalidade iminente. Muitos não ficarão bonitos como os jovens transexuais que veem na TV. Não vão "convencer".
- Depois que passei pelo tratamento de hormônios, tive uma grande decepção. Não sabia o que fazer, mesmo ciente de que não ia ficar com a carinha dessas atrizes de 20, 30 anos - afirma Barbara, 63, que só concordou em dar seu depoimento sob a condição de não revelar seu sobrenome.
Alguns desses transexuais esperaram pela aposentadoria para não terem a carreira interrompida ou destruída. Outros preferiram se revelar após a morte dos pais/parceiros ou a saída dos filhos de casa. Todos se sentiam cansados de fingir e queriam viver a última fase da vida como bem entendessem, ainda que por um curto período e sob circunstâncias restritivas. A única coisa de que fazem questão antes de morrer é serem autênticos.
Sheela vem acompanhando com interesse as notícias sobre Bruce Jenner, cuja transição foi revelada e confirmada pela revista People no final de janeiro. Ela comenta:
- Tanta gente veio me dizer que estava sendo corajosa, mas nunca achei que fosse uma questão de bravura, mas sim de necessidade, urgência. Quando aceitei a solução, foi como se dessem um caminhão de comida para um esfomeado. Uma pessoa como Bruce Jenner tem que passar por tudo isso na frente do mundo inteiro.
Aí, sim, é valentia.