A doçura e o amor que Leontina Freitas da Silva semeou em 106 anos agora se traduzem em um afeto incondicional de netos e filhos. Quanto mais senil Leontina fica, maior é a dedicação dos parentes. Quando ela completou cem, a família se reuniu em uma bailanta. Veio até parente da França. Pensavam que fosse o último, mas Leontina - do latim, vitoriosa como um leão - vem surpreendendo. No sábado, com uma leoa de temática da festa, os familiares se reunirão para comemorar mais um aniversário, os 107 anos.
- Viver tudo isto é uma história, né, vó? - quis saber a neta Carmen Santos, 54 anos.
- É uma proeza - responde Leontina contrariada.
Além de Carmen, Leontina tem outros cinco netos, 16 bisnetos e cinco tataranetos, divididos em Rio de Janeiro, Bahia, Espírito Santo e França. São três filhos de sangue e um de criação. Cláudio Eli Freitas da Silva, 75 anos, é o único vivo e quem cuida diretamente da mãe, prepara as refeições e, quando ela não está disposta, leva o alimento à boca.
Família tem história gravada em DVD
Orgulhosos da história familiar e se derretendo de amores pela matriarca, ao longo da vida paravam atentos para escutarem relatos. De nota em nota, fizeram um DVD para o aniversário de 104 anos, narrado por meio de fotos antigas, até a quarta geração da família.
- Uma coisa difícil para as famílias negras é construírem as árvores genealógicas, pois, em 1889, Rui Barbosa mandou queimar os documentos da escravidão. Conseguimos graças à mãe - diz Cláudio.
Com um carinho singelo, a família se reúne agora para contar causos da avó. Nem sempre ela consegue interagir, devido à memória que se esvai. Céres Marisa Silva dos Santos, 60 anos, professora universitária e neta mais velha, mora em salvador há 27 anos e todo fevereiro vem a Porto Alegre para celebrar os anos da avó. Ela conta que, há alguns anos, Leontina foi visitá-la na Bahia. Ao desfilar descalça na areia da Praia do Forte, olhou para os dedos e disse:
- Olha, eles estão sorrindo. Devem estar dizendo "eu nunca senti essa cosquinha antes".
- Parece meio infantil, mas a leitura é até poética e diz muito sobre a minha avó - conta Céres.
Até os 103 anos, foi bem lúcida. Agora, assiste a vida passar da "poltrona da rainha", como dizem os familiares. Os sobrinhos de Cláudio, Carmen e o irmão Vicente Alves dos Santos Filho, 50 anos, revezam-se para atendê-la. Na casa onde Leontina mora desde que veio de Alegrete para Porto Alegre, perto dos 90 anos, funciona o salão de beleza de Carmen. Todos os dias, quando a neta chega do trabalho, vai até o quarto de Leontina e, com a avó ainda deitada, pergunta como foi a noite, se comeu direitinho e se está com dores. Ao se despedir, recebe um beijo e o desejo de que Deus a acompanhe até em casa. Ela faz questão de manter o ritual, mesmo que nem sempre Leontina reaja:
- É muito bom saber que tem alguém que se preocupa conosco.
Fora ter sido contagiada pela Gripe Espanhola, aos 10 anos, e ter se safado de um aneurisma aos 50, Leontina esbanja saúde. A variedade de remédios que toma cabe em uma bolsinha: apenas para manter o ritmo cardíaco e ativar a memória. E quem desconfia de que a audição não está boa que tente passar dona Leontina para trás.
- Eu vim no inverno, estava com frio. Pedi a Carminha um casaco emprestado. Ela me mandou vestir o da vó, que ela não usava. Ela me olhou e disse: "bonito pegar as coisas dos outros sem pedir" - conta Céres.
A receita para a longevidade, é simples, segundo a idosa:
- Um passarinho se cuida, por que não uma pessoa?
O que se sabe é que nunca comeu alimentos gordurosos e não fumou ou bebeu. A família venera os feitos de Leontina por ter incentivado o estudo dos sete irmãos e também dos filhos.
A neta disse que quando ela começou a precisar de mais cuidados foi o momento mais difícil. Não por eles, mas para não afetar o ego da matriarca.
De formação católica, Leontina encontrou na fé a firmeza para ultrapassar as perdas da vida: desde os irmãos até a única filha mulher, aos 17 anos, vítima de câncer, e o marido, aos 94, por problemas cardíacos. Parou de costurar antes de chegar aos cem.
Vicente é o único neto homem e se reveza nos cuidados.
- Foi um choque perceber que cuidar de uma pessoa idosa é o mesmo que cuidar de uma criança. Mas ela não dá nada de trabalho - revela.
E em tom de voz doce, sentados ao redor da poltrona da matriarca, os cuidadores perguntam:
- Quem chegou até os 107 viveu muito ou pouco?
- Pouco - dá de ombros dona Leontina, rumo aos 108.
Um pouco de história
- Leontina nasceu em 1908 e cresceu em Alegrete, na Fronteira Oeste. Durante a escravidão, lá viveram três mil escravos. Dentre os quais, Benedita, avó de Leontina. Nos bailes e procissões, segundo contava Leontina, ela usava sobre os ombros uma capinha preta de cetim cheia de vidrilhos, doação da família que lhe deu alforria.
- Aos 10 anos, contraiu a Gripe Espanhola, uma pandemia que se espalhou pelo mundo e matou milhões de pessoas. "Deu uma febre alta e me caiu os cabelos", lembrou Leontina.
- A matriarca foi pedida em casamento aos 16 anos por Homero Peres da Silva, mas seu pai só a liberou para o matrimônio quatro anos mais tarde. O marido, que morreu aos 94 anos, era funcionário do Ministério da Guerra e, por conta disto, foram morar em Saicã, hoje conhecido como Campo de Instrução Barão de São Borja, na região entre Rosário do Sul e Cacequi.
- Modista, morava na corte e costurava para as mulheres que chegavam da Europa com tecidos, pedindo réplicas dos modelitos encontrados por lá.
- Na adolescência, brincava na praça da cidade, em Alegrete, e via passarem as tropas de um dos mais sangrentos embates, dos chimangos e maragatos, na Revolução de 23.
O legado de Dona Leontina
Apesar de pouco falar hoje em dia, devido o avançar da idade, os filhos e netos relembram com carinho ensinamentos que jamais esquecerão e que era a marca registrada da matriarca:
- Não se preocupe tanto, leve a vida com mais calma.
- Está gordinho, meu filho. Cuidado com esta postura e chupa a barriga para ficar elegante.
- Trabalhar não mata, a gente tem de se ocupar.
Como é o cuidado da família para o conforto da idosa
- O tom de voz é suave ao se dirigirem a ela, como se estivessem lidando com uma criança.
- A cada três meses, um cabelereiro vai até a casa deles para renovar o corte de cabelo dela, pois desde os 102 a dificuldade de locomoção aumentou. Vez ou outra, a neta faz uma trança embutida.
- Escolhem a roupa com esmero diariamente e nunca esquecem de perfumá-la.
- Há dias em que ela acorda mais ativa e outros, nem tanto. Nesses, facilitam a alimentação, colocando canudos nos copos. Tem vezes que a água é servida a colheradas para não desidratar.
- Os netos fazem questão de dizer que esta dependência total de cuidados dos familiares, não faz dela alguém menor. Na verdade, ela é maior porque está conseguindo ficar no meio deles, dando alegria.