"Passei cera na sala", "pela manhã ventania", "fiz almoço", "coloquei panos de prato na máquina", "organizei a casa", "faltou água", "limpeza no pátio das galinhas", "descasquei goiabas e fervi (chimia)", "somar cadernos padaria e armazém", "recolher as laranjas caídas", "fui na padaria pela manhã (pão, queijo e presunto)", "olhei programas na TV", "limpei fogão", "visita para a vizinha", "dia nublado, o sol não apareceu", "Chico ligou 9h46min", "lâmpada da varanda (trocar)", "recolhi roupas e passei", "na fruteira: ovos, tomate, cebola", "hoje mais uma galinha que se foi", "pela manhã coloquei os canarinhos no sol", "hoje não foi recolhido o lixo", "apanhar cacho de banana perto da cerca", "na farmácia verifiquei a pressão: 15x9 (com Rafael)", "à tarde descanso", "fiz bolo de fubá", "Mathilde veio trazer-me um presente", "levantei às 9h", "colhi bergamotas", "obrigada, Senhor, por mais este dia, amém".
De quantas miudezas se faz um dia? Quantos dias aparentemente monótonos e sem variações expressivas compõem uma vida? Quem passa anos, décadas, preenchendo milhares de páginas com descrições lacônicas e sem emoção de tarefas domésticas, pagamentos de contas, telefonemas dados e recebidos? Por que registrar uma rotina tão banal, sem falhar um único dia? Por que as passagens mais dramáticas, reservadas sobretudo aos anos mais recentes, foram omitidas quase na totalidade? Qual o objetivo de editar a própria existência, ignorando a tristeza, a raiva, o desespero? A função principal de um diário não é acolher o desabafo? Este texto nasceu a partir de muitas perguntas e terminará sem que eu possa ter acesso às respostas da única pessoa que poderia fornecê-las.
Heleanda Kury Franke, minha tia mais próxima e querida, de Cachoeira do Sul, sofreu um grave acidente vascular cerebral (AVC) no início de outubro. Foram três semanas de internação no Hospital de Caridade e Beneficência, entre a unidade de terapia intensiva (UTI) e o quarto, com poucas boas notícias por parte da equipe médica. Nos primeiros dias, passada a sedação, ela reagia com lágrimas, apertava forte a mão dos visitantes, obedecia a alguns comandos das enfermeiras. Perdeu-se em delírios e acabou se fechando em um sono que se alongou até se tornar permanente. Não resistiu a complicações e morreu no início da tarde do dia 24 daquele mês.
Artista plástica e professora de artes aposentada, Nanda, como a chamávamos, passava os dias envolvida com a ampla casa da Rua Conde de Porto Alegre onde sempre morou e restou só, ao final dos seus 77 anos — sem casamentos, filhos ou grandes eventos. O tanto de história que acumulou ficou evidente quando os familiares começaram a abrir armários e gavetas para se desfazer dos pertences. Sabíamos do hábito de tomar nota de tarefas e compromissos, mas não imaginávamos uma coleção de escritos tão farta. Assim como foi feito em relação a roupas, sapatos, móveis, louças, fotografias com aspecto centenário e mais de 20 armações de óculos, era preciso decidir que destino dar a diários e agendas. Para doação, não se prestavam. Jogá-los no lixo? Queimar? Ler? Teria eu, a propósito, o direito de esquadrinhar as memórias que ela deixara?
Atraída pela ideia de saber o que tia Nanda havia dito a respeito de uma vida que parecia uma linha reta, sem sobressaltos, mas que teve um episódio terrivelmente dramático perto do fim, requisitei o acervo de mais de 20 volumes. Haveria segredos de família a serem descobertos? Antes de começar a lê-los, decidi: vou escrever sobre eles. Não sabia o quê, mas poderiam ser alguma coisa. Eu precisava juntar tudo — os registros, as lembranças, o meu luto, as dúvidas, as eventuais surpresas. Ao longo de duas semanas, esquadrinhei milhares de páginas dessas anotações tão peculiares, ouvindo mentalmente a voz dela, como se fosse a narradora. Quero contar aqui o que achei.
Tia Nanda gostava de pintar aquarelas e desenhar com giz pastel, cuidar das plantas do jardim e dos animais de estimação, ver novelas, fazer bolo de fubá, comer galeto da Querência, tomar um vinhozinho, estar com as amigas, rezar para Nossa Senhora das Graças, dar atenção aos vivos — por telefone — e também aos mortos — com flores no cemitério. Contratava ajudantes para a lida do pátio: alguém para cortar a grama, varrer, recolher os galhos secos dos pinheiros, lavar o piso da área dos cachorros. Criou Felipe, o primeiro dos sete sobrinhos, como filho. Intitulou-se "mãe de coração". O maior de seus amores se transformaria, também, no mais devastador de seus lamentos.
A filha de Arlindo e Maria Amélia que não se casou e teve somente um único e breve namoro na juventude era apaixonada por cães, gatos, coelhos, pássaros, patos, galinhas. A fama de coração mole se espalhou, e o povo começou a abusar: ninhadas ou mesmo bichos crescidos eram largados no portão da frente, pois era sabido que ela colocaria todos para dentro. Nos diários, lá estão o amor pelos pets e a tristeza quando algum sumia, adoecia ou morria. "Chamei a Brenda como de costume e ela não apareceu. Já estava escuro. Fui de lanterna procurar. Não a encontrei. Que Deus faça o melhor por ela. Acho que não vou encontrá-la com vida. É um bicho muito querido. Que ela não esteja sofrendo. Que Deus me ajude a suportar. Esta noite será longa", narrou em 17 de junho de 2015. Estripulias e pequenos delitos também eram compartilhados, como nesta sequência de ação e drama em 13 de agosto de 2018: "Estava no mercado. A Beth ligou (para dizer) que o Guri estava pegando as galinhas. Não completei as compras e saí. Matou um galinho garnisé. Agora são cinco".
Os anos da vida adulta foram dedicados ao magistério e à criançada que invadia a casa para as férias de inverno ou verão. Ela levava os sobrinhos para comprar material escolar, tomar sorvete e, principalmente, passar na frente de uma casa com fama de mal-assombrada na Volta da Charqueada. Apesar do traçado tortuoso das relações familiares pelos anos afora, Nanda sempre valorizou muito os laços de parentesco. Em um 1º de janeiro de quase 10 anos atrás, contou: "Hoje foi um dia muito especial. Inauguração da minha churrasqueira. Estava tudo ótimo. Foi bem divertido".
Os humores do clima ganhavam registros frequentes. Nanda se preocupava com eventuais goteiras no teto da velha residência e com a possível queda de árvores. "À tarde grande temporal a partir das 17h. Falta de luz e grandes estrondos", "que noite terrível, TEMPORAL", "hoje dia bonito". Uma prática curiosa era transpor para o papel os episódios da vida online. Entusiasta do Facebook, ela escreveu: "Adicionei nova amiga: Rosângela da farmácia", "Zezinho caiu (está de muletas)", "coloquei no Face o brinco-de-princesa (flor)".
Entre os apontamentos mais curiosos estão notas sobre episódios absolutamente irrelevantes do dia a dia: conteúdo de programas de TV ("assisti ao Big Brother, venceu na prova do líder a Amanda"), horários precisos de telefonemas corriqueiros ("17h25min liguei para a Leila para fazer pé, cortar e pintar"), vaivém de quitutes entre vizinhos ("a Talita mandou chuchu"), andamento do serviço no quintal ("Hoje veio o Erico, refez as valetas", "Ruan limpou os canteiros").
O grande acontecimento da vida de tia Nanda foi uma tragédia. Na manhã de 18 de abril de 2022, estranhando a demora de Felipe para despertar, ela entrou na sala onde ele havia improvisado uma cama na noite anterior. Encontrou o corpo do sobrinho de 42 anos caído no chão, de bruços, as mãos sob o peito. Correu em busca de socorro, mas já não havia o que pudesse ser feito. Na agenda com um coração na capa, essa segunda-feira tem trivialidades como "Luciano virá à tarde", "mangueira (enrolar no suporte)" e "ração (gatos)". Abaixo, bem no meio da página: "Dia mais triste da minha vida. Saudades eternas".
Nanda nunca quis saber a causa da morte de Felipe. Negou-se a ler a certidão de óbito. Ao longo da vida, fez mais do que podia para ajudar o filho emprestado em turbulências pessoais e do trabalho como pequeno empresário. A convivência se estreitara durante a pandemia, quando ele, separando-se da companheira, voltou a morar com a tia. Os diários têm uma ou duas passagens tristonhas com referência a desentendimentos entre ambos. A imensa maioria é de bons momentos, em geral envolvendo as notáveis habilidades dele na cozinha.
A vida que se seguiu foi a possível, assombrada pela imagem do cadáver na sala. Nanda desabafava com a irmã; nos diários, poucas menções, nos raros momentos em que a regra não era a objetividade imperturbável característica de um relatório. "Levantei tarde. Dia ensolarado mas muito frio. Domingo triste. Almocei. O restante do dia passei na cama. A saudade é demais", lê-se em 26 de junho do ano passado. "Felipe, 11 meses que tu fez a viagem para o plano superior. E com certeza foste recebido com muito amor e carinho por tua vó (...). Vou te amar para SEMPRE", escreveu junto de três corações em março de 2023, assinando em seguida: "Nanda (tua tia e mãe do coração)".
A última nota da diarista é de 3 de outubro, quando sofreu o AVC: "Amoxicilina às 12h". Não chegou a tomar o antibiótico. No meio da manhã, foi encontrada no piso de madeira da sala, de olhos abertos, sem fala ou movimentos. Caíra no mesmo lugar onde o sobrinho Felipe tombara morto, quase 18 meses antes. A ambulância transportou Nanda ao hospital, onde a paciente faleceria 21 dias depois.
Procurei o psicanalista Robson de Freitas Pereira, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), observador perspicaz, com a sensibilidade necessária para me ajudar a concluir algo sobre essa experiência. Confessei que, quando estava imersa na leitura, cheguei a me irritar com aquela linearidade. Acabei criando grandes expectativas ao meu redor — colegas de redação me abordavam querendo saber o que eu tinha descoberto — e frustraria essa audiência: não tenho nenhuma revelação atordoante para contar. Robson logo percebeu algo fundamental na história: tia Nanda era professora de artes, não de matemática. Ela encontrou uma forma de se expressar, de extravasar, pintando ou desenhando, mas o cotidiano da arte também requer a disciplina que abundava em seus escritos. O pragmatismo, a secura dos textos são uma escolha, uma forma de editar a vida, deixando de fora as passagens tormentosas.
— A gente se expressa e se controla pela escrita. Você descobriu essa pessoa que conseguiu, na escrita, organizar a vida. Talvez você tenha desvendado o segredo: a disciplina. Ela fez também a sua obra de arte. Teve disciplina, mas teve que ter criatividade também. Acho que passar anos e anos escrevendo nesse estilo não é falta de criatividade, é persistência — refletiu Robson em uma videochamada. — Esses atos e hábitos cotidianos são o que organiza a vida da gente. Me parece uma coisa muito bonita. Às vezes, era um dia muito sofrido, mas, pelo menos ali, era como se fosse normalizado — acrescentou.
Pensar no ponto de vista é fundamental, frisou o psicanalista. A vida, para a maioria das pessoas, é esse punhado de pequenas coisas — mas são pequenas coisas para quem está vendo, ou lendo, de fora.
— Para quem está vivendo, um detalhe pode ser um trauma. Você não está na pele do outro. Efetivamente, são esses fragmentos, essas pequenas coisas que podem ser signo de um trauma ou de um momento de felicidade. Quem é observador pode tomar essas coisas numa certa linearidade, mas, para quem está vivendo, alguns detalhes fazem a diferença — disse Robson.
"Uma carta sempre chega ao seu destino", garante o aforismo. A relação com o outro está presente em qualquer forma de escrita, pontuou o psicanalista, seja em ficção, seja em um diário íntimo. Talvez isso responda uma das minhas grandes inquietações: para quem é escrito um diário? Robson me deu uma resposta:
— A Heleanda encontrou uma leitora.