A morte de David Lynch, anunciada nesta quinta-feira (16) pela família do cineasta estadunidense, que tinha 78 anos e sofria de enfisema pulmonar depois de ter fumado por muito tempo, deixou incontáveis órfãos. Entre eles, o crítico e psicanalista Luiz Zanin Oricchio, que escreveu no Estadão: "Definitivamente, Lynch confiava no poder evocativo dessa máquina de sonhar que é o cinema. Para curtir seus filmes é preciso deixar-se levar, sem querer de imediato enquadrá-los em categorias racionais. São viagens, no sentido literal e figurado do termo. (...) Quem vai ver um dos seus filmes está comprando um ingresso para o desconhecido. Ele sempre fez questão de manter o mistério. E não pense que o cineasta causa perplexidade apenas no público. A própria crítica às vezes se espanta com o que vê na tela e tenta compreender o que assistiu".
Se você nunca teve contato com sua visão artística sombria, surrealista e singularíssima, a dica é ver Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001). Para muitos críticos e grande parte de seus admiradores, esta é a obra-prima do cineasta de O Homem Elefante (1980), de Veludo Azul (1986), da série Twin Peaks (1989-1991/2017), de Coração Selvagem (1990), de A Estrada Perdida (1997), de Uma História Real (1999) e de Império dos Sonhos (2006). Atualmente, o título está disponível no canal Cindie, que pode ser acessado via Amazon Prime Video, e também pode ser alugado na Apple TV e no Google Play.
Cidade dos Sonhos valeu a David Lynch o prêmio de melhor diretor (dividido com Joel Coen, de O Homem que Não Estava Lá) no Festival de Cannes. O longa-metragem competiu no Oscar da mesma categoria e disputou quatro Globos de Ouro: melhor filme/drama, direção, roteiro original e música (Angelo Badalamenti).
Mulholland Drive, o nome original, faz referência à icônica via de Hollywood pela qual se entra no enigmático e instigante labirinto narrativo arquitetado por Lynch. De abordagem corrosiva sobre as engrenagens da indústria cinematográfica que devoram sonhadores ingênuos à densa imersão por postulados psicanalíticos em torno da questão de identidade e memória, Cidade dos Sonhos abre-se a múltiplas camadas de absorção diante do espectador.
Na trama, Naomi Watts interpreta Betty Elms, uma jovem aspirante a atriz que, ao vencer um concurso em sua pequena cidade, vai tentar a sorte em Hollywood, onde fica hospedada no apartamento de uma tia que viajou. Justo ali vai parar uma mulher, Rita (Laura Harring), que perdeu a memória após um acidente de carro.
Elas se tornam afetivamente íntimas e cúmplices na dupla missão: a loira quer estrelar um filme, a morena deseja saber quem de fato é. Em meio a essa jornada, as duas mulheres entram em um clube onde, antes da performance de uma cantora, o apresentador anuncia: "Silencio. No hay banda". Abre-se nesse instante uma espécie de portal que lança essas mulheres em um universo onírico. O que até então se tinha por "real" embaralha-se com projeções (ou memórias, ou sonhos, ou pesadelos) de uma mente perturbada.
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