Para um cineasta acostumado a investigar o lado sombrio da existência em histórias intrincadas e sinuosas, surpreender o público pode significar filmar um enredo solar, humanista e linear. É exatamente o que David Lynch (1946-2025), autor da série Twin Peaks e dos longas-metragens A Estrada Perdida (1997) e Cidade dos Sonhos (2001), fez em Uma História Real (The Straight Story, 1999). Infelizmente, no momento o título está indisponível no streaming.
O nome original, The Straight Story, tanto pode ser traduzido como A História de Straight, sobrenome do protagonista, quanto A História Direta, referência à narrativa objetiva e retilínea. O personagem principal valeu uma indicação ao Oscar de melhor ator para Richard Farnsworth — que, diagnosticado com câncer terminal, se suicidou no dia 6 de outubro de 2000, aos 80 anos.
Baseado em fatos, o filme acompanha o périplo que o aposentado Alvin Straight decide empreender para visitar seu irmão Lyle (Harry Dean Stanton), vitimado por um derrame. A separá-los, além cerca de 700 quilômetros, está um rompimento acontecido 10 anos antes. A distância física e emocional do irmão é muito grande, e Alvin decide percorrê-la com o vagar e o tempo que a situação exigem: dirigindo um lento cortador de grama. No meio da jornada de seis semanas de estrada, ele vai acertando as contas com o passado, compartilhando-o com outros viajantes.
Como observou o crítico e psicanalista Luiz Zanin Oricchio em texto publicado no Estadão, Uma História Real é um filme tão "normal" que chegou até a provocar polêmica: "Muitos fãs quebraram a cabeça para descobrir onde estaria a 'jogada' de Lynch em meio a tanta normalidade. Alguns encontraram a resposta: às vezes a normalidade pode ser mais estranha que os mais esquisitos sonhos ou pesadelos".
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 3 de novembro de 2008, Lynch, respondendo a pergunta do crítico José Geraldo Couto, afirmou que era seu filme "mais experimental":
"Minha terceira esposa, Mary Sweeney, e um amigo dela, John Roach, tiveram a ideia de escrever um roteiro sobre Alvin Straight. A história fora publicada em jornais, com base em uma situação real. Eles falaram comigo: 'Estaria interessado em filmar isso?'. Durante três anos, eles conversaram comigo a respeito, e eu não tinha nenhum interesse pela história. (risos) Mas quando terminaram o roteiro, eles o enviaram a mim e eu me sentei e comecei a ler, e esse roteiro me emocionou. E eu disse: 'Isso é muito bonito'. E mudei completamente minha opinião a respeito. E sempre digo que, embora seja linear, trata-se de meu filme mais experimental, pois há poucos elementos nessa história que seguem uma linearidade. E a maneira como se consegue emoção a partir desses poucos elementos… Não há nada, além disso, é algo direto. Por isso, trata-se de algo, de certa forma, experimental. (...) E esse filme é diferente de outros filmes que fiz, embora se aproxime, de certa forma, de O Homem Elefante".
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