O Nosferatu (2024) de Robert Eggers, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (2), gerou uma expectativa monstra.
De um lado, havia um dos grande clássicos do terror e um dos títulos fundadores do Expressionismo Alemão: Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, uma adaptação clandestina do romance Drácula (1897), de Bram Stoker — a solução encontrada pelo roteirista Henrik Galeen foi simplesmente trocar a ambientação (em vez de Londres, a fictícia Wisborg) e os nomes dos personagens. Por exemplo, o vampiro da Transilvânia se chama Conde Orlok, Thomas Hutter é o corretor de imóveis Jonathan Harker, e Ellen, sua esposa, Mina.
Murnau foi um gênio do movimento que buscava substituir a descrição objetiva da realidade por uma percepção subjetiva e que usava o jogo de luzes e sombras para ilustrar personagens atormentados e temas inquietantes. Em Nosferatu (disponível na plataforma de streaming Belas Artes à La Carte), o diretor lançou mão de inovações técnicas e truques de efeitos visuais, como a imagem em negativo de árvores brancas sobre o céu negro. Interpretado por Max Schreck, com próteses nos dedos e nas orelhas, Orlok é apresentado ao público quase sempre debaixo de portais e arcos arredondados. O contraste fixa a imagem de uma figura pontiaguda, portanto, "afiado como uma faca e ferino como uma serpente", conforme comparou a doutora em Comunicação Anelise de Carli em texto publicado em Zero Hora na época do centenário do filme. Que foi refilmado em 1979 por outros cineasta alemão, Werner Herzog, então livre para usar os nomes adotados por Stoker, depois que o livro caiu em domínio público; e inspirou A Sombra do Vampiro (2000), em que E. Elias Merhige recria os bastidores da produção de 1922.
Do outro lado, estava Robert Eggers, estadunidense de 41 anos incensado como um dos mestres do horror contemporâneo — ainda que sempre encenado em tempos antigos. São dele A Bruxa (2015), O Farol (2019) e O Homem do Norte (2022). Nesses títulos, o cineasta empregou o sobrenatural para abordar temas como o desabrochar da sexualidade, o fanatismo religioso, o caráter repressor da sociedade, a masculinidade frágil ou tóxica, o embate perene entre o velho contra o novo, o conhecimento teórico diante do conhecimento prático, homem versus deus e, nas suas próprias palavras, "a escuridão dentro da mente do ser humano".
Ele também exibiu seu talento para conjurar uma atmosfera de tensão e perigo que é simultaneamente sufocante e sedutora. E demonstrou seu respeito pela autenticidade histórica, com detalhes que enriquecem a contextualização e contribuem para a imersão do espectador — o diretor justifica: "O ato de pesquisar é algo que de que eu gosto muito, porque elimina decisões. Você não precisa inventar nada, apenas procura e encontra".
Em Nosferatu, Eggers retoma muitas de suas marcas, mas pela primeira vez está lidando com um enredo que não foi criado por ele — o roteiro é baseado no script de Henrik Galeen e no romance de Bram Stoker. Ainda assim, afirma que é seu filme mais pessoal: "Uma história não engendrada por mim, mas com a qual convivi e sonhei desde a infância".
A trama é basicamente a mesma com a qual muitos de nós também já convivemos e sonhamos. Na Wisborg de 1838, o polido corretor de imóveis Thomas Hutter, vivido por Nicholas Hoult, de Jurado Nº 2 (2024), é casado com a jovem e angelical Ellen, papel de Lily-Rose Depp, filha do ator Johnny Depp com a atriz e cantora Vanessa Paradis e protagonista da famigerada minissérie The Idol (2023). Seu chefe, Knock (Simon McBurney), ordena que viaje à Transilvânia para fechar um negócio com o misterioso Conde Orlok (Bill Skarsgård, acrescentando mais um vilão monstruoso a sua galeria, depois do palhaço Pennywise de It e do deviante Kro de Eternos).
Não é segredo para ninguém que Orlok é um vampiro e que vai aprisionar Thomas e partir para a cidade alemã, onde tentará reivindicar o amor da esposa do agente imobiliário. Ellen, por sua vez, tomada pela melancolia e assombrada por pesadelos muito vívidos, está sob os cuidados de um casal de amigos, Friedrich (Aaron Taylor-Johnson) e Anna (Emma Corrin). O time de coadjuvantes se completa com o doutor Sievers (Ralph Ineson, de A Bruxa) e o professor Von Franz, interpretado por Willem Dafoe (indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante pelo Max Schreck de A Sombra do Vampiro), que, em sua terceira colaboração com Eggers, faz o controvertido especialista no oculto e no misticismo, um personagem decalcado do Van Helsing de Drácula.
Para quem está habituado às encarnações cinematográficas de uma das mais célebres criações da literatura de horror, a narrativa de Nosferatu pode provocar um demorado (são 133 minutos de duração) déjà vu — aí incluído o tom algo pastiche de Von Franz, que chega a lembrar o Van Helsing das produções da Hammer nos anos 1960 e 1970. Robert Eggers procura atenuar essa sensação de duas formas. A primeira é pelo deslumbramento visual. Saltam aos olhos a sintonia e o esmero das equipes de seus parceiros habituais, o diretor de fotografia Jarin Blaschke (que concorreu ao Oscar por O Farol), a editora Louise Ford, o designer de produção Craig Lathrop e a figurinista Linda Muir.
Lathrop, por exemplo, além de aproveitar exteriores como o do Castelo de Hunedoara, na Romênia, produziu cenários capazes de acomodar o trabalho de câmera de Blaschke, com paredes e tetos móveis que viabilizassem tomadas longas e únicas. O diretor de fotografia, por sua vez, dessatura as cores, aproximando o filme do preto e branco, e recorre a luz de velas para ampliar a acurácia da reconstituição de época e os efeitos alucinatórios.
O figurino, obviamente, também é fundamental na contextualização histórica — e ajuda a reforçar a ideia de que Ellen é uma vítima não apenas do vampiro, mas da sociedade do século 19. Quando ela é "diagnosticada" com surto psicótico ou histeria, o doutor Sievers recomenda o uso de um espartilho, peça que pode ser vista como um símbolo da repressão às mulheres e da sujeição do corpo feminino aos padrões estéticos.
Ford monta as cenas com precisão, fazendo poucos cortes, e elegância — talvez até demais: em alguns momentos, Nosferatu parece palatável demais, como se tivesse receio de chocar o grande público com a sede por sangue do personagem-título.
O trabalho todo é adornado pela trilha sonora composta por Robin Carolan, que se juntou a Eggers em O Homem do Norte. Executada por uma orquestra com cordas, harpa, instrumentos de sopro, percussão e coro, a música é sinistra e romântica ao mesmo tempo, evocando tanto beleza quanto tragédia.
A segunda forma adotada por Eggers para diferenciar seu Nosferatu tem a ver com uma história que o diretor conta no material de divulgação do filme: "Há apenas 20 anos, no sul da Romênia, um homem que se acredita ser um vampiro foi exumado, e seu cadáver, mutilado ritualisticamente. Ele era um homem difícil e alcoólatra. Depois de sua morte, sua família disse que ele voltou como um strigoi (um espírito reanimado e vampiresco), atacando-os durante a noite. Sua nora sofreu particularmente com essas agressões noturnas e adoeceu. Quando o cadáver foi destruído, de acordo com o procedimento folclórico, as visitas vampíricas pararam. Seu reinado de terror terminou. Sua nora foi curada. Qual é o trauma maligno que nem a morte pode apagar? É um conceito de partir o coração. Esta é a essência da crença palpável no vampiro. O vampiro folclórico não é um sedutor suave de casaco elegante, nem um herói cintilante e taciturno. O vampiro popular incorpora a doença, a morte e o sexo de uma forma vil, brutal e implacável. Este é o vampiro que eu queria relembrar para um público moderno".
O Orlok de 1922 e o de 1979 já eram grotescos, mas as representações de Max Schreck e Klaus Kinski parecem fofinhas perto da encarnação de Bill Skarsgård. O ator sueco de 34 anos e 1m90cm precisava ficar cerca de quatro horas na cadeira de maquiagem, de onde surgia com próteses no rosto, dentes retorcidos e afiados, unhas gigantes e pele pútrida. É uma figura, contudo, que demoramos para ver em cena por completo, se faz presente mais em silhuetas e sombras, ou então em imagens desfocadas — daí que nem haja fotos oficiais de divulgação. Mas a voz de Nosferatu tonitrua desde a abertura, geralmente falando em dácio, uma língua morta. O processo de construção vocal demandou ter aulas com um cantor de ópera para "baixar uma oitava inteira" (deixando o tom bem mais grave), fazer centenas de testes de gravação, explorar a distância do microfone, massagear a laringe e até aprender o canto gutural da Mongólia. O efeito é ambíguo: se o espectador não entrar no clima proposto pelo filme, por vezes poderá achar caricatural.
Mais importante do que a voz e a imagem de Orlok é o que ele diz e o que ele simboliza.
Na fascinante sequência de abertura de Nosferatu, Ellen, ainda adolescente, tem uma espécie de transe. No seu sofrimento e na sua solidão, clama por "um anjo da guarda, um espírito de conforto, qualquer coisa":
— Venha a mim. Venha a mim.
Esse desejo abre uma conexão psíquica com Orlok, que responde:
— Você me despertou de uma eternidade na escuridão.
O que Orlok tem por Ellen não é uma paixão imortal, como a do personagem de Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker (1992), de Francis Ford Coppola. Trata-se de uma obsessão voraz. Movido por um insaciável apetite sexual, ele é um stalker que vai cerceando a jovem alemã. Como em outra releitura de um clássico da literatura de terror, O Homem Invisível (2020), de Leigh Whannell, as interações de Orlok com Ellen permitem espelhar os relacionamentos tóxicos e abusivos — "Sonhe comigo, apenas comigo", comanda o conde. E é muito apropriada a imagem de um vampiro: ele está sugando a energia e a vitalidade dela.
Ellen se torna uma personagem dilacerada por emoções conflitantes: como Orlok supriu sua carência em um momento de desespero e até lhe proporcionou prazer, ainda mantém uma atração sexual pelo sujeito, mesmo que misturada ao medo, à raiva e à repulsa. Ela quer se livrar dessa maldição, mas que poucos enxergam assim — outro ponto que suscita comparação com os relacionamentos tóxicos, para os quais a família ou a comunidade podem estar alheios ou fazendo vista grossa. É necessário que alguém exerça a escuta ativa, como o professor Von Franz.
ALERTA DE SPOILERS (para quem nunca viu Nosferatu).
Talvez a única saída de Ellen seja o sacrifício — que se revela também um castigo para Orlok, consumido por sua luxúria irreplegível. Na versão de Robert Eggers, o antológico epílogo de Nosferatu que casa sexo com morte transforma-se em uma obra de arte tão sensual quanto doentia, tão bonita quanto aterradora.
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