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A plataforma MUBI acaba de resgatar do limbo digital dois filmaços delirantes premiados no Festival de Cannes: Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, e Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch.
Apocalypse Now coloca no contexto da Guerra do Vietnã o clássico literário O Coração das Trevas (1899), em que Joseph Conrad narra uma expedição na África colonizada e barbarizada pelos europeus. No filme do diretor da trilogia O Poderoso Chefão (1972-1990), Martin Sheen vive um capitão do exército estadunidense encarregado de localizar um coronel que desertou, enlouqueceu e virou uma líder messiânico à frente de uma milícia na selva, papel de Marlon Brando.
Coppola fez do longa-metragem um dos mais impressionantes e precisos registros da insanidade da guerra, visão ilustrada pelo personagem de Robert Duvall, um coronel caubói que se revigora a cada manhã com o cheiro do napalm, combustível das bombas incendiárias despejadas também sobre os civis vietnamitas.
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O filme já teve três versões. A primeira chegou a Cannes em cima da hora e em cópia não finalizada, com 147 minutos de duração. No festival francês, dividiu a Palma de Ouro com O Tambor (1979), de Volker Schlöndorff, e recebeu o troféu da crítica. Também conquistou três Globos de Ouro — melhor diretor, ator coadjuvante (Duvall) e trilha sonora (composta por Coppola com seu pai, Carmine Coppola) — e duas categorias do Oscar, a de fotografia (Vittorio Storaro) e a de som, além de ter concorrido às estatuetas douradas de melhor filme, direção, roteiro adaptado, ator coadjuvante, edição e direção de arte.
As filmagens se revelaram uma mistura de megalomania e missão quixotesca. Iniciadas em 1976, nas Filipinas, foram um pesadelo para a equipe, como registra o documentário O Apocalipse de um Cineasta (1991), com imagens de bastidores captadas por Eleanor Coppola, esposa do diretor, material posteriormente complementado por Fax Bahr e George Hickenlooper. Aconteceram todos os problemas técnicos, econômicos, pessoais e climatológicos possíveis. O atraso e a tensão na produção foram de tal ordem que Francis Ford Coppola teve um colapso nervoso e Martin Sheen sofreu um infarto, fora os fatos de Marlon Brando aparecer fora de forma e indomável no set e Dennis Hopper, que vive um fotógrafo, mal conseguir dizer suas falas de tanta droga que consumia.
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Em 2001, no chamado Apocalypse Now Redux, Coppola acrescentou 49 minutos de conteúdo extra, como a parada da missão em uma fazenda, onde discute os resquícios da colonização francesa no Sudeste Asiático. Apocalypse Now: Final Cut (Versão Final), lançado em 2019 e em cartaz no MUBI, faz um meio-termo entre as duas primeiras versões. Com 182 minutos, retira ou enxuga gordurinhas e reordena sequências para dar ao conjunto mais fluidez e impacto.
"Cidade dos Sonhos", obra-prima de David Lynch
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Em Cannes, Cidade dos Sonhos valeu a David Lynch o prêmio de melhor diretor (dividido com Joel Coen, de O Homem que Não Estava Lá). O longa-metragem competiu no Oscar da mesma categoria e disputou quatro Globos de Ouro: melhor filme/drama, direção, roteiro original e música (Angelo Badalamenti).
Para muitos críticos e grande parte de seus admiradores, esta é a obra-prima do cineasta de O Homem Elefante (1980), de Veludo Azul (1986), da série Twin Peaks (1989-1991/2017), de Coração Selvagem (1990) e de A Estrada Perdida (1997).
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Mulholland Drive, o título original, faz referência à icônica via de Hollywood pela qual se entra no enigmático e instigante labirinto narrativo arquitetado por Lynch. De abordagem corrosiva sobre as engrenagens da indústria cinematográfica que devoram sonhadores ingênuos à densa imersão por postulados psicanalíticos em torno da questão de identidade e memória, Cidade dos Sonhos abre-se a múltiplas camadas de absorção diante do espectador.
Na trama, Naomi Watts interpreta Betty Elms, uma jovem aspirante a atriz que, ao vencer um concurso em sua pequena cidade, vai tentar a sorte em Hollywood, onde fica hospedada no apartamento de uma tia que viajou. Justo ali vai parar uma mulher, Rita (Laura Harring), que perdeu a memória após um acidente de carro.
Elas se tornam afetivamente íntimas e cúmplices na dupla missão: a loira quer estrelar um filme, a morena deseja saber quem de fato é. Em meio a essa jornada, as duas mulheres entram em um clube onde, antes da performance de uma cantora, o apresentador anuncia: "Silencio. No hay banda". Abre-se nesse instante uma espécie de portal que lança essas mulheres em um universo onírico. O que até então se tinha por "real" embaralha-se com projeções (ou memórias, ou sonhos, ou pesadelos) de uma mente perturbada.