Não é apenas a semelhança no prenome que aproxima os quadrinistas Marcelo D'Salete e Marcello Quintanilha. Ambos são publicados pela editora Veneta, que acaba de lançar, respectivamente, Mukanda Tiodora (224 páginas, R$ 79,90) e a coletânea Alimenta Estes Olhos (176 páginas, R$ 134,90). Ambos se dedicam a retratar temas e personagens da história do Brasil ou da nossa contemporaneidade: a escravidão e o racismo, os trabalhadores dos subúrbios e os jogadores de futebol — mas aqueles que vivem à margem dos holofotes e dos carrões. E ambos estão entre os autores do país mais celebrados no Exterior.
Paulista nascido em São Bernardo do Campo, em 1979, D'Salete ganhou em 2018 o prêmio Eisner — o mais importante do mercado dos Estados Unidos — de melhor edição de material estrangeiro. A honra coube a Run for It, título em inglês de Cumbe (publicado originalmente em 2014), que, em quatro histórias, aborda a resistência dos negros no Brasil colonial contra a violência da escravidão. Também em 2018, mas no Brasil e por Angola Janga (2017), ele conquistou o Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, de história em quadrinhos e três categorias do Troféu HQ Mix: roteirista nacional, desenhista nacional e destaque internacional. Em uma obra monumental (são 432 páginas), o autor nos embrenha no Pernambuco do século 17, na época dos engenhos de cana de açúcar, onde a liberdade e a dignidade são duas estrelas a guiarem os passos de Zumbi dos Palmares e personagens como Osenga, Soares e Andala.
Fluminense nascido em Niterói, em 1971, e radicado em Barcelona, na Espanha, Quintanilha já foi duas vezes premiado no famoso Festival de Angoulême, na França. A primeira foi com o troféu de melhor história policial, em 2016, por Tungstênio (2014), que também mereceu, na Alemanha, em 2017, o prêmio Rudolph Dirks nas categorias sul-americanas de roteiro e arte. Em Salvador, o autor acompanha, de muito perto, um ex-sargento do Exército que encasqueta de desbaratar um crime ambiental testemunhado por ele, um traficante pé-de-chinelo, um policial e uma mulher infeliz no casamento. Essas trajetórias vão se cruzando de maneira cada vez mais incandescente, vão revelando o quanto essas pessoas estão ligadas umas às outras, vão adensando a trama — o que explica o nome da HQ: tungstênio é o metal mais denso da tabela periódica, só é encontrado na natureza combinado com outros elementos e tem o mais alto ponto de ebulição e fusão (tudo a ver com o calor da trama e o da Bahia).
Em 2022, Quintanilha tornou-se o primeiro brasileiro a receber o Fauve d'Or, a principal distinção em Angoulême, feito alcançado por Escuta, Formosa Márcia (2021), que se passa no Rio de Janeiro, alternando as cenas entre uma comunidade controlada por traficantes e milicianos, um hospital público e as casas dos idosos onde a protagonista, uma enfermeira, faz bicos como cuidadora. Além das contas a pagar, Márcia tem uma grande preocupação: a filha, a jovem Jaqueline, que chama a mãe de "colega" e só quer saber de farra e de rolés com o bandido Tigela, que é casado com Jéssica, pai do menino Richardson e mancomunado com o policial militar Xibiu. Essa HQ também valeu a Marcello o Jabuti, premiação na qual havia ficado em segundo lugar em 2017, por Hinário Nacional.
"Mukanda Tiodora": Marcelo D'Salete e a escravidão
Em Mukanda Tiodora, Marcelo D'Salete continua falando sobre a escravidão, mas avança no tempo e muda de geografia. Estamos na São Paulo da década de 1860.
— Quando estava pesquisando para Cumbe e Angola Janga, li o livro Sonhos Africanos, Vivências Ladinas, da historiadora Maria Cristina Cortez Wissenbach, em que ela fala da Tiodora — diz D'Salete sobre Tiodora Dias da Cunha, mulher escravizada que procurou, por meio da palavra escrita, obter sua alforria. — Quando deparei com aquelas cartas, vi que eram documentos extremamente fortes, potentes e interessantes. Por causa de três pontos. Primeiro, para contar uma história protagonizada por uma mulher negra. Segundo, para tratar de São Paulo. A capital e o Interior eram escravistas, como todo o país, mas havia contornos e dinâmicas diferentes na comparação entre a cidade e as fazendas de café. Terceiro, para abordar outros modos de negociação e resistência da população negra naquele período.
Analfabeta, Tiodora recorre a outro escravizado, o carpinteiro e pedreiro Claro, para escrever as missivas.
— Claro era um escravizado que sabia ler e sabia escrever. Isso, para os escravizadores, era encarado como uma ameaça, mas para alguns senhores podia ser uma forma de obter mais lucro, porque o escravizado era capaz de desempenhar outro tipo de serviço, além do trabalho braçal e brutal — comenta D'Salete.
A partir das sete cartas, todas transcritas nas quase 50 páginas de conteúdo extra (reprodução de documentos, dados, cronologia, fotos, mapas, textos de apoio), o quadrinista apresenta os demais personagens. Além de Tiodora e Claro, há Luís, seu marido, Inocêncio, o filho, e o cônego Terra, de quem ela cobra a liberdade. Um coadjuvante de luxo é Luiz Gama (1830-1882), jornalista, advogado e escritor que se tornou o patrono da abolição da escravatura.
O que não muda em Mukanda Tiodora são as características formais. Nas obras de D'Salete, o traço é simultaneamente rústico e poético. Há a primazia da cena e da ação sobre a introspecção e a palavra. A diagramação aparentemente simples apresenta enquadramentos asfixiantes, e a divisão da página por vezes em vários quadros amplia a tensão. E cabe ao leitor preencher as elipses, intuir os sentimentos, decifrar o não dito.
— Começo a desenvolver o roteiro muito a partir da ação. Minha história acontece a partir disso, de movimento, do que os personagens fazem, daí que a diagramação precisa ser bem direta, a nitidez da página é algo importante — explica o quadrinista. — Aos poucos, depois de pensar nessa forma de acontecimento, aí sim vou pensando em como o texto colabora para a compreensão dessas ações, contextualiza e acrescenta um outro plano de significados para a história. Creio que isso ajuda o leitor a submergir na narrativa, por fazer esse trabalho de conexão de um quadro com o outro, por pensar no significado dessas imagens. Gosto muito de trabalhar com planos mais próximos dos personagens e dos objetos. Gosto de pensar que a partir desses fragmentos de rostos, corpos e objetos o leitor pode compreender a cena como um todo, e acho que isso é um mecanismo essencial para tornar a narrativa atraente e instigante.
"Alimenta Estes Olhos": Marcello Quintanilha e o futebol
Em Alimenta Estes Olhos, Marcello Quintanilha reúne 20 HQs (algumas delas inéditas) que foram produzidas entre 1993 e 2021. Estão lá os álbuns Sábado dos Meus Amores (2009) e Almas Públicas (2011). Estão lá os tipos "sujos, marginais, grotescos, adjetivos com que comumente se agraciaram meus personagens", conta o autor no prefácio, "em sua maioria oriundos do corte econômico mais amplo da população, entre a classe média e a informalidade, por não se assemelharem a biotipos proporcionados por melhores condições laborais, alimentação mais balanceada, saneamento básico e acesso à saúde de qualidade, além de, obviamente, não serem brancos". Estão lá as experimentações narrativas, como em Sufrágio Universal (2019), em que, do lado de fora de um prédio, sem sequer vislumbrar uma figura humana, acompanhamos um diálogo sobre "as espumas que ficam salobras e endurecidas nas beiras das poças da discussão, quando a gente briga com alguém". Ou Eu Era o Fenômeno da Minha Classe (2004), em que uma artista de contorcionismo e equilibrismo rememora um episódio traumático do tempo de escola. Ou ainda István Szabó (2019) — cujo título cita o cineasta húngaro de Mephisto (1981), Coronel Redl (1985) e Sunshine (1999), que em 2006 revelou que havia atuado como informante do governo durante o regime comunista —, em que um sujeito se refere ao golpe militar de 1964, no Brasil, como "contragolpe", denuncia a "infiltração" da esquerda na mídia, nas escolas e nas universidades para a criação de "uma hegemonia cultural no país" e termina mencionando uma teoria da conspiração ligada à água fluoretada.
E estão lá, também, três quadrinhos sobre futebol que já podem ser considerados clássicos: Fealdade de Fabiano Gorila (1998) revê o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954, pelos olhos de um jovem jogador que retorna para Niterói após um teste cancelado no Fluminense. Esse personagem é inspirado no pai do quadrinista, Hélcio Carneiro Quintanilha, ex-jogador.
De Como Djalma Branco Perdeu o Amigo em Dia de Jogo (2001) flagra as superstições de um torcedor fanático do Flamengo. Falar na hora do pênalti dá azar, sair da sala no meio de uma partida também é proibido, e ai do mundo se duas garrafas de cerveja não estiverem posicionadas sobre uma folha do Jornal dos Sports, em uma das prateleiras da geladeira, antes do apito inicial.
De Pinho (2007) tem como cenário o interior da Bahia. Na estrada, uma equipe de reportagem troca uma carona por orientações para chegar a um museu. O passageiro, Agnaldo, joga a segunda divisão do Campeonato Baiano, pelo fictício Soterópolis, e aí, diante da curiosidade de um jornalista, começa a narrar suas alegrias, suas agruras e suas ambições.
Esses três quadrinhos são clássicos e até raros. Quando lançou Luzes de Niterói (2019), que se passa na década de 1950 e conta as desventuras de um zagueiro que havia acabado de ascender na carreira — trocara o time da Companhia Manufatora Fluminense de Tecidos pelo Canto do Rio Foot-Ball Club, o Cantusca, o mais popular da cidade —, Marcello Quintanilha comentou em entrevista a ZH sobre a baixa frequência do esporte identitário brasileiro na ficção nacional:
— Este é um fenômeno que ocorre não apenas com o futebol, mas com um leque de elementos identitários do Brasil, promovendo um déficit tanto iconográfico quanto temático, notavelmente no campo dos quadrinhos, onde poderiam encabeçar diversos gêneros. Há uma fração do Brasil que não reconhece a média da população como parte de seu mesmo corpo.
O irônico é que, embora pinte os sonhos e as mazelas da nossa sociedade e dê voz a personagens característicos do país — aí incluído um ouvido muito atento aos diálogos cheios de coloquialismos e oralidade dos usuários de transporte coletivo, dos trabalhadores da construção civil, dos policiais que têm uma relação promíscua com o crime das mulheres que criam sozinhas seus filhos —, Quintanilha rechaça o elogio de que seja um retratista da alma brasileira.
— Não me interessa apresentar uma ideia de brasileiro, definir uma forma de ser que corresponda ao que se entende por brasileiro — ele disse em entrevista ao jornalista Ramon Vitral quando lançou Escuta, Formosa Márcia. — Acho que por isso minhas histórias têm sido tão bem recebidas fora do Brasil ao longo dos anos, porque me seduz tratar do ser humano em sua natureza mais crua, independentemente de um imperativo geográfico.
Já Marcelo D'Salete pretende continuar contando a história do Brasil a partir de personagens marginalizados, excluídos, oprimidos, sejam os moradores dos subúrbios do século 21 (como em Noite Luz e Encruzilhada, suas primeiras HQs), sejam os negros escravizados do período colonial e imperial, aos quais vem se dedicando.
— Esse universo que venho desenvolvendo é extremamente vasto e muitas vezes pouco explorado nos quadrinhos e mesmo na literatura. A partir das pesquisas, dos arquivos e dos documentos, podemos criar narrativas interessantes e importantes para as novas gerações. O conhecimento que temos sobre escravidão é algo que está afastado no tempo e no espaço. Criou-se uma imagem da escravidão como algo ligado exclusivamente aos engenhos e às grandes fazendas. Esquece-se ou deixa-se em segundo plano o trabalho feito nas cidades. E a população escravizada tinha uma presença muito significativa em profissões como sapateiro, lavadeira, carregador, tropeiro, carpinteiro, pedreiro, vendedor.
E apesar da ambientação no Brasil dos anos 1860, Mukanda Tiodora reflete um processo globalizado e bem atual: o de reconexão dos descendentes de escravizados com o África.
— Nas cartas, Tiodora também acessa o tempo todo a sua história na África, na região de Angola e do Congo, mostrando que não rompeu, não apagou o que havia acontecido antes. Manteve consigo o sonho e a necessidade de ter contato com os seus — finaliza D'Salete.