Em cartaz em Porto Alegre (Cine Grand Café, Espaço Bourbon Country e Sala Paulo Amorim), Caxias do Sul (Sala Ulysses Geremias) e Pelotas (Cineflix Shopping Pelotas), o 13º Festival Varilux de Cinema Francês chegou na hora certa. Os filmes que se destacam na programação abordam temas muito urgentes e atuais — mesmo que nem sempre suas histórias sejam contemporâneas.
O Acontecimento (2021), por exemplo, se passa na França de 1963, mas discute um assunto — o direito ao aborto — que ganhou enorme atualidade nos últimos dias. No Brasil, veio à tona o caso da menina de 11 anos que teve negada pela Justiça a interrupção da gravidez, prevista em lei, pelo fato de a garota ter sido vítima de estupro e correr risco. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte revogou a decisão conhecida como Roe vs. Wade, de 1973, que na prática garantia esse direito às mulheres de todo o país. Agora, a decisão passa a ser dos Estados — pelo menos 13 deles vão tornar novamente proibido o aborto.
Em entrevista à coluna, Emmanuelle Boudier, codiretora e cocuradora do Festival Varilux, já havia comentado a sintonia dos filmes com a realidade:
— Os filmes da edição 2022 apresentam aos espectadores uma visão de mundo sem dúvidas menos leve do que o habitual: a pandemia, a guerra às portas da Europa, as migrações forçadas, as ameaças ambientais, a ascensão dos extremos…
Às vezes, os temas se misturam. O Destino de Haffmann (2021) está ambientado na Paris de 1941, durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial, mas serve de alerta contra o negacionismo do Holocausto e o avanço da extrema direita no país onde surgiu o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", como aponta o ator Gilles Lellouche, que interpreta um joalheiro colaboracionista.
— Esse personagem foi um presente envenenado — diz Lellouche, que comemora 50 anos no dia 5 de julho. — Não tenho o barato de dormir no personagem, mas neste caso aconteceu uma coisa diferente. A pandemia interrompeu as filmagens, então precisei ficar dois meses e meio tolerando aquela imundície, convivendo com a feiura do comportamento daquele homem. Tive de manter não apenas o bigode, mas também sua personalidade. Acabei intoxicado, uma raiva tomou conta de mim e respingou na minha família.
Lellouche é uma espécie de cara do Festival Varilux. Está presente em outros dois filmes: Golias (2022), que retrata o debate sobre o uso de agrotóxicos, e Kompromat (2022), suspense baseado na história real de um diretor da Aliança Francesa na Sibéria que acaba preso devido a uma armação do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa, o FSB (a antiga KGB). O ator foi um dos artistas trazidos ao Brasil para divulgar o evento e participar de uma rodada de entrevistas no hotel Fairmont Rio de Janeiro, em Copacabana, na última quinta-feira (23). Também estavam presentes os diretores Régis Roinsard (Esperando Bojangles), Diastème (O Mundo de Ontem), Eric Gravel (Contratempos) e Carine Tardieu (Os Jovens Amantes). A seguir, falo mais sobre alguns desses filmes e reproduzo trechos das conversas com a delegação francesa. Para ver a programação completa, acesse este site (o Espaço Bourbon Country ainda não divulgou a grade da segunda semana).
(*) O colunista viajou ao Rio a convite do Festival Varilux de Cinema Francês
O Acontecimento (2021)
De Audrey Diwan. Na França de 1963, Anne (Anamaria Vartolomei), uma estudante promissora, engravida. Em nome de seu futuro, ela decide abortar, desafiando a lei em uma jornada por conta própria. Sessões no Cine Grand Café: 30/6, às 16h30min, e 5/7, às 16h30min. Sessão no Espaço Bourbon Country: 29/6, às 21h. Sessão na Sala Paulo Amorim: 12/7, às 19h.
Por que ver: recebeu o Leão de Ouro de melhor filme e o prêmio da crítica no Festival de Veneza, em 2021, e ganhou o troféu César de atriz revelação. De modo seco e amparada pela atuação estoica de Anamaria Vartolomei, Audrey Diwan retrata o quão solitária — e, também por isso, perigosa — pode ser a luta das mulheres por seus direitos.
Contratempos (2021)
De Eric Gravel. O filme acompanha a saga de Julie (Laure Calamy), que luta sozinha para criar seus dois filhos pequenos no subúrbio e manter seu emprego em Paris, como camareira-chefe em um hotel. Quando ela finalmente consegue uma entrevista para um cargo correspondente a seu currículo e as suas aspirações, eclode uma greve geral, paralisando o transporte. Sessões no Cine Grand Café: 29/6, às 19h, e 6/7, às 21h25min. Sessão no Espaço Bourbon Country: 28/6, às 18h40min. Sessões na Sala Paulo Amorim: 14/7, às 19h, e 16/7, às 17h.
Por que ver: ganhador dos troféus de melhor direção e melhor atriz na mostra Horizontes do Festival de Veneza, o filme é muito eficiente em mostrar um problema universal — o da precarização do trabalho — por uma perspectiva individual e muito envolvente ao intrincar os dramas pessoais de Julie aos contratempos coletivos. À segurança e à sensibilidade da direção de Gravel, soma-se o notável desempenho de Calamy, que dosa confiança, fragilidade, perspicácia e um pouco de desatino.
2 perguntas para Eric Gravel
Como surgiu a ideia de abordar a precarização do trabalho pela perspectiva de uma mulher e uma mãe, e em um contexto de greve geral do transporte público?
O filme começou com uma reflexão que não era sobre esses temas da pergunta. Minha primeira ideia era simplesmente falar sobre quem mora longe do local de trabalho. É o meu caso, eu moro no campo, mas na verdade não preciso me deslocar tanto quanto a protagonista de Contratempos, por exemplo. Quis retratar gente que faz isso todos os dias: acorda, pega o trem, trabalha, volta. Mas uma história assim não seria tão legal para o espectador. A partir daí, em um processo de certa forma contrário ao do descascar uma cebola, fui acrescentando camadas, juntando a questão de a personagem ser uma mulher e uma mãe solteira, o que acarreta desafios e conflitos, o tema da precarização do trabalho e a situação de greve no transporte.
Esta é uma pergunta SPOILER para quem não viu o filme, mas tenho curiosidade de saber: você chegou a pensar em um final triste, no qual tudo teria dado errado para Julie?
Não, não pensei em um final negativo. Na verdade, não considero que o final do filme seja exatamente positivo. Apenas restabelece um equilíbrio. O telefonema que ela recebe é uma boa e uma má notícia. Que bom arranjar um novo emprego e com um salário melhor, mas não resolve de fato a vida dela, vai manter o problema do deslocamento diário e agora com o agravante de que a Julie não tem mais com quem deixar os filhos.
O Destino de Haffmann (2021)
De Fred Cavayé. Na Paris de 1941, durante a ocupação alemã, François Mercier (Gilles Lellouche) é um homem comum que sonha em ter um filho com a esposa, Blanche (Sara Giraudeau). Ele trabalha para um talentoso joalheiro, o Sr. Haffmann (Daniel Auteuil) — que é judeu. O recrudescimento da perseguição nazista força a partida da família de Haffmann e um rearranjo das relações de poder na joalheria, com consequências cada vez mais complicadas. Sessões no Cine Grand Café: 2/7, às 21h30min, e 5/7, às 14h30min. Sessão na Sala Paulo Amorim: 17/7, às 19h.
Por que ver: se a origem teatral engessa um pouco o filme do ponto de vista formal, por outro lado, permite que o trio de atores se destaque em uma trama sobre o duelo ganância versus integridade no contexto de uma ferida francesa não cicatrizada — a do colaboracionismo na Segunda Guerra Mundial.
Golias (2022)
De Frédéric Tellier. Intercala e entrelaça os rumos de três personagens. France (Emmanuelle Bercot) é uma professora de educação física durante o dia, mantém outro emprego à noite e é uma ativista contra o uso de agrotóxicos, que fizeram adoecer seu marido e pai de sua filha. Patrick Fameau (Gilles Lellouche) é um solitário advogado parisiense que se tornou especialista em direito ambiental. Mathias (Pierre Niney) é um brilhante lobista que trabalha em prol dos interesses dos produtores de diesel e da indústria agroquímica. Sessões no Cine Grand Café: 1/7, às 14h30min, e 3/7, às 17h55min. Sessão na Sala Paulo Amorim: 8/7, às 19h.
Por que ver: Golias retrata um debate cada vez mais quente, o dos agrotóxicos, defendidos por uns em nome da produtividade e da rentabilidade, condenados por outros por causa dos riscos à saúde e ao ambiente. Com paciência, vai construindo uma atmosfera sufocante, marcada pelas imagens contrastantes da elite e da classe trabalhadora e por alguns acontecimentos inesperados, ainda que o quadro geral seja claro. Vale destacar as atuações do trio principal, sobretudo a de Niney (vencedor do César de melhor ator por Yves Saint-Laurent). É impressionante como seu personagem consegue dobrar verdades sem sequer piscar.
2 perguntas para Gilles Lellouche
O Destino de Haffmann toca em uma ferida da Segunda Guerra Mundial ainda não cicatrizada, a do colaboracionismo francês. Por que é importante contar histórias como essa?
A História se irradia de geração para geração, graças ao testemunho das pessoas que viveram. Mas hoje, na França, 89 dos deputados eleitos são da Reunião Nacional (nome atual da Frente Nacional, partido de extrema direita de caráter conservador e nacionalista), declarações e pichações antissemitas são feitas à luz do dia, a juventude está esquecendo a existência do Holocausto. Daí a importância de fazermos filmes como O Destino de Haffmann, para consertar cabeças que estavam enviesadas.
Golias aborda um tema muito quente, o dos agrotóxicos. Você acredita que, na vida real, idealistas como o advogado Patrick Fameau têm chance contra as grandes empresas que, como mostra o filme, mantêm relações próximas com governantes e políticos?
Não sou um ator político, não falo sobre política em entrevistas. A minha forma de me posicionar e de trabalhar essas questões é pelos filmes. O curioso no caso de Golias é que inicialmente eu estava escalado para interpretar o papel do lobista, mas daí eu disse ao diretor que tinha acabado de encarnar um colaboracionista, não queria fazer outro filho da puta. Então, fiquei com o personagem do advogado. Eu adoro os utopistas. Espero que na vida real haja pessoas como o Fameau, que combate gente 10 vezes maior do que ele. Eu acho que estamos vivendo um período de grande descrença na política. Os índices de abstenção nas eleições são altos, os jovens não estão mais votando por entenderem que a política tradicional não serve para nada, o voto deles não encontra eco, as instituições parecem inamovíveis e intocáveis. Assim, este é o momento propício para ideias utópicas. Precisamos de luzes na Europa, precisamos acreditar em alguma coisa. A mudança não vai passar pelo lado financeiro nem pelo lado político, mas pelo lado humano. Temos de nos reescutar, as pessoas não se escutam mais. Há uma crise de fé e de esperança. Mas sou um otimista.
O Mundo de Ontem (2022)
De Diastème. Elisabeth de Raincy (papel de Léa Drucker), presidente da República, optou por não disputar a reeleição. Três dias antes do primeiro turno, ela fica sabendo por seu secretário-geral, Franck L'Herbier (Denis Podalydès), que um escândalo do Exterior atrapalhará sua sucessão por um nome de seu partido e dará a vitória ao candidato de extrema direita, xenófobo de carteirinha. Sessões no Cine Grand Café: 1/7, às 19h30min, e 5/7, às 20h40min. Sessão na Sala Paulo Amorim: 15/7, às 17h.
Por que ver: o filme toma emprestado o título da autobiografia publicada por Stefan Zweig à época da Segunda Guerra, mas seu tema é atualíssimo — e não só na França. Os bastidores podem não ser tão movimentados quanto os da série House of Cards, mas, em diálogos afiados, o filme pergunta: quais são os limites na política? O que pode e não pode em nome de um suposto bem maior? É possível vencer sem sujar as mãos?
2 perguntas para Diastème
Seu filme se mostrou muito atual e quase clarividente: nunca a extrema-direita francesa chegou tão perto da presidência quanto nas eleições de abril. O que explica os quase 42% de votos conquistados por Marine Le Pen, candidata da Reunião Nacional? Os franceses perderam o medo da família Le Pen?
É uma pergunta muito difícil. Há muitos elementos. O que constatamos é que a ideia que tínhamos da extrema direita se esfarelou. E isso aconteceu em vários países: na França, nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump, na Hungria, com Viktor Orbán, no Brasil, com Jair Bolsonaro. O processo de "desdiabolização" realmente surtiu efeito. Há alguns anos, não se convidava a Marine Le Pen para uma entrevista na TV como se fosse uma candidata normal. Hoje em dia, ela está em todos os canais de TV. Tento lembrar nesse filme de onde surgiram essas pessoas. A Reunião Nacional foi criada por um nazista francês (Diastème se refere a Jean-Marie Le Pen, que foi o primeiro líder do partido e sua figura central por 40 anos, até 2011. Pai de Marine Le Pen, em 1987, ele disse que as câmaras de gás que mataram milhões de judeus foram "um pequeno detalhe da história da Segunda Guerra Mundial"). Nas eleições legislativas, a Reunião Nacional elegeu 89 deputados. Seu recorde anterior, 30 anos atrás, havia sido 33. Um dos novos deputados teve durante anos uma livraria com obras negacionistas e chegou a ser preso por seis meses por agressão a um cidadão negro. E agora ele é deputado, um representante da nação francesa. É catastrófico. Mas há um outro fator. O país não está indo bem, e os presidentes não resolvem. As pessoas não têm dinheiro, os jovens estão pobres. E isso que estou falando da França, um país rico. Há uma grande responsabilidade por parte de quem está no poder. Esses problemas todos se acumularam e resultaram no cenário que estamos vivendo.
Em O Mundo de Ontem, os personagens principais se veem diante de um dilema: para combater o que se entende como mal, é preciso sujar as mãos? É este o caminho, usar as mesmas armas do adversário?
É a pergunta do filme. Para fazer o que achamos que é o bem, será que temos de fazer o mal? O filme coloca essa pergunta, mas não dá a resposta. Quando eu era estudante de História, 35 anos atrás, não titubeei diante daquela célebre pergunta: "Se vocês pudessem ter assassinado Hitler em 1933, teriam feito isso?". Com 18 anos e como antifascista, a gente responde claro, sim. Mas com o passar do tempo, dizemos não, não posso usar os métodos do meu inimigo para resolver o problema. A coincidência macabra é que, quando o filme estreou, a guerra na Ucrânia tinha acabado de começar. Logo surgiram perguntas do tipo "Como fazer para assassinar Putin (Vladimir Putin, presidente da Rússia), parecida com a que surge em O Mundo de Ontem, que é uma ficção. São perguntas horrorosas. No filme, deixo essa questão em aberto para o espectador. Quero que ele se coloque na posição da presidente: "O que eu faria no lugar dela?".