Eu me antecipo a dois aniversários "redondos" (o meu, neste setembro, e o da coluna, em novembro!) com um texto autocentrado, voltado às minhas andanças, a razão de existir destes Recortes de Viagem e, em boa parte, minha razão de viver.
Relutei em escrever sobre viagens quando uma ex-colega sugeriu que o fizesse — achei que não teria conteúdo para mais de algumas semanas, veja só! —, e registrei nos primórdios do blog — depois transformado em coluna no impresso e no digital — o motivo pelo qual viajava e escrevia:
"Gosto de me mover, sem objetivo nenhum. Identifico-me com o escritor e viajante Robert Louis Stevenson, que uma vez escreveu: 'Eu não viajo para ir a algum lugar, mas para ir. A grande emoção é se mover'."
O que eu penso hoje, decorrido tanto tempo e com tantos carimbos imaginários e reais na minha identidade e no meu passaporte? Reescreveria as linhas acima, mas acrescentaria o que vem a seguir:
"Viajo para viver. Não consigo conceber a vida restrita ao mesmo espaço, à mesma paisagem, às mesmas pessoas. Viajo para retroalimentar a minha vida, para entender a vida dos outros. Viajo para me tornar quem sou."
Nos últimos tempos, com o retorno do overtourism, que muitos decretavam que se encerraria com a pandemia, tenho pensado bastante (mais!) sobre viajar, considerando questões com aparência (apenas) socioeconômica, mas que para mim revelam-se existenciais. Os excessos registrados mundo afora são, também, consequência da democratização das viagens. E aí vêm os paradoxos: que bom que mais gente pode viajar e ver o mundo; que ruim que muitas comunidades se sintam atacadas pela overdose de viajantes. Como conciliar o que parece inconciliável? Como as experiências turísticas podem enriquecer uns e outros? Como torná-las (ainda) mais populares e, ao mesmo tempo, menos invasivas? Qual o efeito real de uma viagem?
Ninguém é obrigado a viajar e há inclusive quem não goste de se movimentar por aí, à toa ou com objetivos (não muitas colunas atrás, sugeri a ótima série O viajante relutante, com o ator Eugene Levy, convicto na sua aversão em percorrer o mundo). Outros revelam-se viciados em roteiros, novos ou antigos, como se precisassem se mover para seguir respirando. Como leitora, acompanhei dois embates recentes sobre o tema na revista New Yorker e no jornal New York Times, o que me deu ainda mais pano para pensar.
Em junho, na New Yorker, a filósofa e professora da Universidade de Chicago Agnes Callard publicou um longo ensaio em que, num resumo bem simplificado, desfaz a ideia de qualquer revolução interna causada por viagens turísticas — ela considera exceções viagens para estudos e mudanças para outros países:
"Viajar nos transforma na pior versão de nós mesmos enquanto nos convencemos de que estamos no nosso melhor (…) Queremos experimentar uma mudança, mas acabamos por infligir a mudança nos outros (…) Viajar é um bumerangue, te deixa exatamente onde você começou", apregoa ela, citando exemplos de quem não precisou deslocar-se para obter efeitos transformadores em si e no mundo — ela classifica de "turistas estacionários" grandes nomes da literatura e da filosofia que produziram suas obras quase sem sair do lugar, como Fernando Pessoa, G.K. Chesterton, Ralph Waldo Emerson, Immanuel Kant, Sócrates...
Um mês após o ensaio de Callard, recém-retornado de um roteiro pela Europa com a esposa e os quatro filhos, o colunista do NYT Ross Douthat respondeu ao artigo da professora, questionando os argumentos com pinceladas de ironia:
"Você pode sair com uma mentalidade de guia e ser enfeitiçado por uma vista inesperada ou prostrado por uma obra de arte. Você ainda pode ter um despertar religioso no meio de uma viagem de ônibus pelas catedrais da França (conheço casos assim). E se você conseguir esse tipo de encontro absoluto, ainda há espaço para que a viagem seja edificante de maneiras que vão além do mero entretenimento (...) todos esses viajantes estão desfrutando de uma extensão de sua educação, um aprofundamento de seu conhecimento, que é menos do que uma conversão, mas mais do que apenas um pouco de diversão inofensiva (...) O ensaio subestima o sentido em que as viagens de ida e volta podem ser uma habilidade em si, uma habilidade que você pode cultivar, uma forma de domínio que testa seus limites como planejador e navegador e luta contra todos os vícios".
Não é para tomar partido, só para pensar.
Eu, ainda assim, sigo compartilhando os pontos de vista de Douthat. Indo e voltando, no mínimo, testo limites e desenvolvo habilidades. E acho que vou além. Posso não me transformar, mas aprendo. E você?
A opinião de 5 viajantes
"Pra mim viajar é sempre uma jornada interior. Viajo pra conhecer o mundo, mas volto me conhecendo melhor. Gosto de embarcar sem muitos planos e deixar a viagem me surpreender, experimentar aquela sensação de liberdade que só se tem quando se viaja."
ALESSANDRA CORREA, jornalista radicada nos EUA, companheira de várias viagens
"Viajo toda semana a trabalho, mas quando escolho viajar, desejo ver o mundo de forma diferente, conhecer novas realidades e me encantar com o belo. Viagens são fascinantes, me desconecto da minha realidade e costumo voltar renovada e repleta de novas ideias!"
"Eu viajo por curiosidade e por uma ânsia de desbravar o desconhecido. Meu mapa-múndi pessoal é como um grande quebra-cabeça onde cada peça facilita os próximos encaixes e, ao longo do caminho, entendo melhor a história e a geopolítica local e global."
BETO CONTE, diretor da TripTravel viagens e intercâmbios
"Viajo com saudade do desconhecido, imersa em culturas e lugares novos. Nasci para explorar esse mundo maravilhoso. Minhas viagens são filosofia, uma jornada espiritual. O espírito nômade me guia, e sinto a missão de compartilhar suas belezas."
IVANE FÁVERO, turismóloga e autora da plataforma Viajante Maduro
"Quando coloquei o pé na estrada sozinho pela primeira vez, sabia que o mundo me desafiaria a questioná-lo. Então, passei a viajar para buscar respostas, novas perspectivas e concretizar paisagens que desde criança habitavam o meu imaginário."
TIAGO HALEWICZ, diretor cultural da Casamundi