Os prefeitos que nos últimos dias vêm cobrando do governo do Estado uma espécie de aval ao tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina e realizando licitações para a compra da droga levaram um banho de água gelada nesta quinta-feira (23). O maior estudo já realizado no Brasil concluiu que a hidroxicloroquina, associada ou não à azitromicina, não traz nenhum benefício ao tratamento de pacientes com quadros leves a moderados de covid-19.
O resultado do estudo, que acompanhou 667 pacientes da covid-19 em 55 hospitais brasileiros, foi publicado no New England Journal of Medicine, uma das principais publicações científicas do mundo.
Além de confirmar outros estudos internacionais que não comprovaram a eficácia da cloroquina no tratamento precoce defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, a pesquisa concluiu que a droga provoca “efeitos cardíacos e hepáticos adversos”. A coalizão, maior aliança formada no Brasil para pesquisas sobre o coronavírus, tem como representante no Rio Grande do Sul o Hospital Moinhos de Vento. Desse consórcio participam hospitais de referência como o Albert Einstein, o Sírio Libanês e o Oswaldo Cruz, em São Paulo, o Brazilian Clinical Research Institute (BCRI) e Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet).
Em síntese, o estudo confirma o que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta vem dizendo: em uma pessoa jovem, a cloroquina tem o mesmo efeito de um placebo ou de uma fitinha de Nosso Senhor do Bom Fim.
A divulgação do estudo ocorre poucos dias depois de Bolsonaro e o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, terem aparecido em redes sociais fazendo propaganda da cloroquina. A aparição dos dois no papel de “senhores-propaganda — já que pela idade nenhum pode ser chamado de “garoto-propaganda” — de um medicamento de eficácia não comprovada desencadeou uma corrida de prefeitos ao coquetel que inclui, além da cloroquina, ivermectina e azitromicina.
Pouco antes da divulgação do resultado do estudo científico, questionado pela coluna sobre a pressão dos prefeitos pela adoção do chamado “tratamento precoce” como política pública estadual, o governador Eduardo Leite respondeu:
— O governo não proíbe e não recomenda, porque não cabe a ele decidir. Prescrever tratamento é prerrogativa do médico.
A secretária da Saúde, Arita Bergmann, disse que o Estado não adotará protocolo de tratamento até que se tenha comprovação científica de que este ou aquele medicamento funciona no tratamento de pessoas infectadas pelo coronavírus.
Leite insistiu que não cabe ao governo dizer o que os médicos devem fazer e lembrou que a cloroquina pode ser administrada pelos médicos, desde que o paciente assine um termo dizendo que foi informado sobre os efeitos e autoriza o uso da medicação. O governador lembrou que o Estado distribuiu aos maiores hospitais os 323 mil comprimidos de cloroquina que recebeu do governo federal. Outro lote chegará ao Estado nos próximos dias e será distribuído aos municípios para que dispensem em suas farmácias em caso de prescrição médica.
Do total já repassado, apenas 27% foram usados. A Secretaria da Saúde sugeriu que os hospitais de pequeno porte solicitem o medicamento aos maiores. Leite apelou aos gaúchos para que evitem a automedicação:
— Quem tiver sintomas leves, procure seu médico ou a unidade básica de saúde. Só o médico pode prescrever remédios.
Esse é o ponto que deve preocupar as autoridades sanitárias: a ideia disseminada no Brasil de que a cloroquina é capaz de evitar o agravamento dos casos leva parte da população a acreditar que funcione como prevenção. Porque acreditam nessa tese, difundida por médicos a despeito da falta de comprovação nas pesquisas, ou porque não querem frustrar seus eleitores, prefeitos compram a cloroquina ou pressionam o Estado a fornecê-la.
Como o estudo foi feito:
- Foram estudados apenas casos leves e moderados, de pacientes na fase inicial da doença (admitidos há menos de 48 horas nos hospitais dentro dos primeiros sete dias de manifestação dos sintomas). A idade média era de 50 anos.
- Por sorteio, os pacientes foram divididos em três grupos.
- O primeiro, composto por 217 pessoas, recebeu uma combinação de hidroxicloroquina, associada a azitromicina e suporte clínico padrão por sete dias.
- O segundo, com 221 pacientes, recebeu somente a hidroxicloroquina e suporte clínico padrão, também por sete dias.
- O terceiro (227 pacientes) teve apenas o suporte clínico, com acompanhamento médico e tratamento padrão em casos de síndromes respiratórias.
- Todos os pacientes foram analisados por 15 dias a contar do início do tratamento.
- Ao final, constatou-se que o quadro clínico era similar nos três grupos.
- Dos que usaram a hidroxicloroquina combinada com azitromicina, 69% estavam em casa depois de 15 dias, sem limitação.
- Dos que receberam apenas a hidroxicloroquina, o índice de recuperação sem sequelas foi de 64%. Entre os pacientes que não receberam apenas suporte clínico padrão em caso de síndromes respiratórias, 68% estavam em casa depois de 15 dias sem limitações.