Quando Carlos Saura lançou a comédia dramática Mamãe Faz Cem Anos, em 1979, eu não conhecia nenhuma pessoa tão velha. Nem eu nem minha amiga Lúcia Wey, fã de Saura e de Geraldine Chaplin. Era ficção, esse terreno em que tudo é possível — até os filhos tramarem a morte da anciã para colocar a mão no seguro. De lá para cá, a expectativa de vida no mundo foi aumentando e chegar aos cem anos já não chega a ser excepcional — no Japão é quase corriqueiro — mas não deixa de ser extraordinário quando se trata de uma mulher pobre, nascida na roça e dependente da rede pública de saúde.
Em 59 anos de vida, só fui a duas festas de cem anos. Não por acaso, de duas mulheres (a expectativa de vida dos homens é menor). Duas mulheres de trajetórias diferentes, que em comum só têm o fato de serem viúvas e valentes: Hertha Spier e Otília Wey.
Em 2018, celebramos os cem anos de dona Hertha Spier, a sobrevivente do Holocausto que tem tatuado no braço o número A-21646. No final de 2019, nasceu o primeiro bisneto de dona Hertha, o Otto. Quando os filhos mostraram a foto do bebê em um celular, ela olhou, pensou, sorriu e comentou:
— Eu não pensava que ia ser vó. Agora sou bisavó... Puxa, que grande. Que gordo.
E, depois de uma pausa, olhando para o celular do filho Mario:
— Fantástico... Esse aparelho é fabuloso.
Sim, dona Hertha, a polonesa que sobreviveu ao nazismo, ainda tem lucidez para se impressionar com a possibilidade de conhecer o bisneto minutos depois do nascimento por uma foto em alta definição no celular do filho.
No sábado, comemoramos os cem anos de dona Otília Wey, mãe da minha amiga Lúcia. A jovem Otília acompanhou a distância e por notícias desencontradas a grande guerra que levou toda a família de Hertha, do outro lado do oceano. Descendente de alemães, morava no interior de São Pedro do Sul, trabalhava na roça, costurava e mal falava português. Casou-se aos 21 anos com Arlindo Wey e teve seis filhos, todos de parto normal, em casa. A própria mãe foi a parteira. Em 1948, já com três filhos, os Wey se mudaram para a cidade. Dona Otília passou a ensinar corte e costura para moças que passavam alguns meses morando com a família, mas mantinha uma horta e uma vaca de leite.
Quando Saura dirigiu Mamãe Faz Cem Anos, dona Otília tinha 50 e morava em Porto Alegre. Era uma senhorinha delgada, agitada e mandona, que não precisava mais se preocupar com os cinco filhos adultos e dedicava sua infindável energia ao caçula, Luís, que tinha síndrome de Down. Por essa época, ficou viúva e decidiu que o melhor para o filho era morar em um lugar em que estivesse em contato com a terra. Aos 80, esbanjava saúde e se recusava a deixar a chácara em que vivia no interior de Taquara com o filho. Foi difícil convencê-la de que aos 90 já não podia cortar lenha, plantar milho e criar galinhas.
Aos cem, dona Otília já enterrou três filhos. Luís foi o último, já com mais de 60 anos. Vive em Igrejinha, em um lar de idosos, com jardim e árvores que lembram a vida no campo. Que os filhos se lembrem, só esteve hospitalizada uma vez na vida, para retirar um cisto de ovário. A pressão arterial é de fazer inveja aos descendentes. Caminha com a coluna ereta e se preocupa em não engordar.
As pernas seguem firmes e permitiram subir as escadas sem dificuldade para chegar ao salão da festa e caminhar entre os convidados sem se cansar. A memória está um tanto confusa. Esqueceu das mortes do marido e dos filhos. Quando pergunta por eles, ouve que estão bem e volta a se preocupar com a roça de feijão. Na imaginação, ainda capina, tira leite, planta e colhe. No sábado, ao reencontrar os parentes que vieram de longe, comentava ao ser reapresentada a um sobrinho ou neto:
— Nossa, como cresceu!
Dona Otília é a prova de que se manter ativa é o primeiro passo para a longevidade. Nesse ritmo, é capaz de parar no Guiness Book como a mulher mais velha do Brasil.