Dois dias depois de ter deixado a Secretaria da Cultura do Ministério da Cidadania, por determinação do ministro Osmar Terra, o pelotense Henrique Pires soltou o verbo e os nós que tinha na garganta.
Em entrevista ao programa Timeline, detalhou suas divergência com o ex-chefe em relação ao financiamento de projetos na área da Cultura, sobretudo no cinema. À coluna, confirmou o que havia revelado ao jornalista Bruno Boghossian, da Folha de S.Paulo, e deu detalhes do seu primeiro embate ideológico no ministério:
— Quando Chico Buarque ganhou o prêmio Camões, quase fui demitido. (Terra) proibiu que algum representante do Ministério vá a Lisboa na entrega da homenagem. O Brasil será representado por alguém do Itamaraty.
Por se tratar de um prêmio criado pela Biblioteca Nacional em 1988 "para consagrar um autor de língua portuguesa"— os jurados são escritores de Brasil, Portugal, Angola e Moçambique —, soa estranho que a escolha de Chico Buarque tenha provocado uma crise no governo Bolsonaro. Pires explicou a Boghossian:
— Ele (Terra) ficou furioso, porque eu tinha escolhido os representantes brasileiros do júri (os escritores Antonio Cícero e Antônio Hohlfeldt). O candidato deles não era o Chico, mas os outros quatro jurados chegaram com o nome dele, e eles seriam derrotados.
Nas notícias sobre a concessão do prêmio, consta que Chico foi escolhido por decisão unânime do júri. Além de Hohlfeldt e Cícero, participaram do júri do prêmio Camões os escritores Clara Rowland e Manuel Frias Martins (Portugal), Nataniel Ngomane (Moçambique) e Ana Paula Tavares (Angola).
Chico vai receber o prêmio de 100 mil euros no início de 2020, em Lisboa.
A coluna tentou ouvir a versão de Terra sobre o episódio, mas o ministro decidiu que não vai se manifestar sobre as declarações de Pires, que foi seu chefe de gabinete no Ministério do Desenvolvimento Social no governo de Michel Temer. O clima entre os dois é de pratos quebrados.
Na entrevista ao Timeline, Pires confirmou que a gota d'água para sua saída foi a suspensão de um edital de projetos para a TV que incluía uma categoria para séries com temática LGBT. Reiterou que não compactuava com a censura, que o governo chama de "filtros". Invocou a Constituição e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que criminaliza a homofobia e a equipara a crimes raciais para justificar sua contrariedade com as recentes decisões sobre os critérios para financiamento de produções artísticas.
Lembrou ainda que as produções audiovisuais geram emprego e movimentam a economia. Contou que teve uma conversa difícil com Terra na terça-feira e que o ministro pediu o cargo.
— Disse que o cargo sempre esteve à disposição dele — contou.
Em nota, a Assessoria de Comunicação do Ministério da Cidadania desmentiu a versão inicial de que Pires pedira demissão. Diz a nota:
"Ao contrário da versão divulgada pelo ex-secretário especial da Cultura José Henrique Pires o cargo foi pedido pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, na terça-feira (20), à noite, por entender que ele não estava desempenhando as políticas propostas pela pasta. O ministro se diz surpreso com o fato de que o ex secretário, até ser comunicado da sua demissão, não manifestou qualquer discordância à frente da secretaria. O secretário-adjunto e secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, José Paulo Soares Martins, assume o cargo."
Em São Paulo, nesta quinta-feira (22), Terra participou do evento Brasil de Ideias, do Grupo Voto, ao lado do ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Em entrevista à entrada do hotel onde se realizava o evento, reafirmou que o governo federal vai escolher os temas dos filmes financiados com dinheiro público, usando como critério "o interesse da sociedade". Não está claro como será aferido o interesse da sociedade.
Terra voltou a dizer que demitiu Pires porque o secretário não vinha desempenhando o trabalho como o governo gostaria.
À Folha de S.Paulo, Pires alfinetou Terra, por estar alinhado com as ideias conservadoras de Bolsonaro:
— O Osmar sempre teve uma postura de esquerda. Ele foi militante no PC do B.