Antes de ouvir pela primeira vez a palavra solidariedade, eu a conheci pessoalmente sob a forma de um "puchirão". Era assim que os pequenos agricultores da minha terra _ meu pai era um deles _ chamavam o conhecido mutirão. Vem daí minha paixão pelo cooperativismo, meu apreço pelos bons vizinhos e meu amor por pessoas solidárias.
Desse pedaço da minha infância a memória guarda imagens que me permitiriam editar um filme virtual. Começa com uma panorâmica do trigal dourado, mostra as espigas maduras em contraste com o céu azul da primavera e, então, foca nos homens de rosto queimado, chegando com suas ceifas, que é como chamávamos as foices de cortar trigo. Espalham-se pelos eitos e, como se estivessem sincronizados, cortam a planta a 10 centímetros do chão e vão fazendo os feixes que trarão nas costas quando vierem para almoçar, ou colocarão na carroça de bois.
Aqui interrompo meu filme para contar do mutirão na pré-história da mecanização das lavouras e dos agrotóxicos chamados pelo eufemismo de "secante", que matam as ervas daninhas. À época do plantio, da capina e, principalmente, da colheita, meu pai era convidado a participar do mutirão por um vizinho que não conseguira dar conta do trabalho usando apenas as forças da família. Nunca vi meu pai recusar um convite. Também nunca vi faltar quorum para os mutirões que ele organizava e do qual nós, as crianças, participávamos como auxiliares de minha mãe e das vizinhas que vinham com os maridos ajudar na preparação da comida.
Mesmo as mulheres que, como minha mãe, trabalhavam na roça, em dias de mutirão tinham como tarefa principal cozinhar para os homens que voltavam suados, famintos e sedentos. O almoço era uma espécie de confraternização. Os homens riam, contavam causos, espichavam-se na grama para uma breve sesta e voltavam para a lavoura. As mulheres e as crianças recolhiam a louça, lavavam, secavam é só então comiam, porque na casa não havia prato nem espaço para todos almoçarem ao mesmo tempo.
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Nova rodada de lavação de louça e começava a preparação para o café da tarde. Pão com melado, bolo frito (que você, da cidade, conhece por bolinho de chuva) e café com leite eram a essência desse lanche servido em meio aos feixes de trigo.
Nos mutirões de colheita, o dia terminava com o trigo amontoado perto de casa, onde, no dia seguinte, o homem da trilhadeira estacionaria aquela geringonça que, milagrosamente, separava os grãos da palha. Os amigos voltavam para suas casas, às vezes 10 quilômetros distantes, e nós sonhávamos com o pão que resultaria daquele trigo.
Essas memórias se avivam quando vejo meus amigos de hoje envolvidos com ações solidárias. De juntar tampinhas de plástico para o Instituto do Câncer Infantil, como fazemos na redação de ZH, liderados pela Camila Saccomori, a recolher roupas, alimentos e material escolar para vítimas de enchentes, temporais, incêndios ou qualquer outra desgraça, ação frequente entre os colegas de ZH, Rádio Gaúcha e RBS TV.
Nesse exército de pessoas solidárias com quem convivo no trabalho há uma que poderia ganhar p título de deusa da generosidade. É Kelly Matos, que os ouvintes da Radio Gaúcha conhecem como profissional brilhante do jornalismo político e do esporte. Eu a vi chegar ainda menina, estagiária, e posso dizer que se inclui na categoria que minha filha carimba como "melhor pessoa". Porque não tem ação solidária que a Kelly não encampe. Ela nos mobiliza no Natal, no Dia da Criança, na Páscoa. E, sem alarde, é capaz de sair do trabalho para ir a uma loja no Centro comprar um sapato para uma menina de que mora na Vila Mario Quintana, arranjou um estágio como "menor aprendiz" e não tem o que calçar para se apresentar no emprego. Como não amar uma pessoa assim?