O genial Luis Fernando Verissimo entrou na minha vida discretamente, como tradutor do conto As calcinhas cor-de-rosa do capitão, que dava nome ao primeiro volume da coleção Ipilivro, distribuída como brinde aos clientes dos postos Ipiranga, lá por 1973. Livro, na aldeia distante em que nasci, era raro como trevo de quatro folhas, sapato novo ou presente de Natal. Em um dia inesquecível, meu pai foi à cidade e voltou com essa relíquia que, por saudosismo, acabo de comprar no sebo Estante Virtual e que deve chegar lá por terça ou quarta-feira.
A bem da verdade, só muito tempo depois atentei para a existência da figura do tradutor. O primeiro Verissimo que me conquistou de cara foi o pai, Erico, num segundo volume da coleção da Ipiranga. Eram três histórias em um livro só: As aventuras do avião vermelho, Rosa Maria no castelo encantado e Os três porquinhos pobres.
Nos anos seguintes conheci as grandes obras de Erico e só quando já estava na faculdade descobri as múltiplas faces de Luis Fernando, o filho culto, irônico, engraçado, sutil, cáustico. Hoje, ouso dizer que em uma seleção brasileira de talentos, LFV seria titular absoluto. Ser colega desse escritor extraordinário, que tem coragem de pensar e de se expor, mesmo sabendo que será julgado e condenado no tribunal das redes sociais, é coisa que tenho vontade de escrever no meu currículo. No ano passado, no encontro dos colunistas de ZH, tiramos esta foto (com Martha Medeiros, Cláudia Tajes e Alfredo Fedrizzi), que guardo no celular para mostrar a quem em outro Estado ou país me perguntar se conheço Verissimo.
Em 1999, numa viagem à Alemanha, o intérprete escalado para me acompanhar em Berlim, Dresden e Weimar perguntou se eu conhecia um escritor brasileiro chamado Luis Fernando Verissimo. Enchi o peito de orgulho verde-amarelo, pensei no "sirvam nossas façanhas" (que normalmente critico) do Hino Rio-Grandense e respondi "claro que sim, é um dos nossos mais talentosos escritores". Perguntei se ele conhecia a obra de Verissimo, e o alemão, cujo nome agora me escapa, respondeu que foi o brasileiro mais difícil a quem até então ele servira de intérprete.
Estranhei. O alemão só podia estar de mau humor. Como assim? Verissimo, tão amável, criando problemas para um intérprete? Será que inventou palavras intraduzíveis? Será que citou Guimarães Rosa? Será que, mesmo não sendo dado ao gauchismo, contou que uma das músicas mais cantadas no Rio Grande do Sul tem um verso que fala em "flor de tuna/ camoatim de mel campeiro"? O alemão explicou:
_ Eu perguntava uma coisa, ele só dizia "sim" ou "não". Ainda bem que não estava sozinho. A mulher dele, muito simpática, falava pelos dois. Acho que o nome dela é Lucía.
_ Lúcia _ eu corrigi, e expliquei ao alemão que Verissimo fala por escrito.
Pensei em contar do analista de Bagé, da velhinha de Taubaté, do Boca, do Ed Mort, da Dora Avante, do Dudu, o alarmista, mas concluí que só deixaria o alemão confuso. Seu trabalho naquele dia incluía me apresentar a casa em que Goethe viveu e morreu pedindo "luz, mais luz".
Se no futuro algum intérprete japonês disser de Verissimo alguma coisa parecida, vou puxar da bolsa o texto do Fraga, jornalista, chargista e humorista, publicado no DOC deste fim de semana com o título Luis Falante Verissimo. Ninguém fez uma síntese mais apropriada do homem a quem não canso de admirar: "Num mundo de tagarelas, um dos homens mais quietos é também o escritor mais admirado do país, mas LFV nunca se furtou de falar pelos cotovelos, na voz única dos personagens que criou".
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